EM SÃO SALVADOR DA BAHIA




Pela primeira vez na vida encontrei uma coisa que não quero compreender. Isto é um progresso e uma maneira de começar a falar do Brasil.

Quis um falso acaso que ocupasse algumas das oito horas do meu voo entre Lisboa e Salvador – porque é só de Salvador, da Bahia, que, por hoje, vou falar – com a leitura da jovial colectânea de textos escritos por Agustina Bessa-Luís entre 1970 e 1974: “Alegria do Mundo – II”. A página 155, Agustina caracteriza um certo tipo de homens que crescem tristes e macambúzios porque na infância não habituaram o “paladar à sensibilidade do vinho, ao gosto da erva de cozinha, ao perfume do cravo, ao hálito da canela quente, ao dormido tempero do alecrim na caça”. Pois bem, feitas as adaptações gastronómicas impostas pela geografia, eu diria que com a gente de Salvador acontece exactamente o contrário. Sabor e saber.

Sentam-se num degrau do passeio como numa poltrona porque todos são proprietários da completa extensão dos seus próprios corpos.

Deitam-se na calçada como em colchão de pena de palácio porque todos são príncipes da completa extensão dos seus próprios corpos.

Estão de pé sobre precaríssimos telhados como estátuas de carne quente em pedestal.

Descansam refastelados num monumento de pneus à porta de uma borracharia.

Três rapazes exemplares, calção de banho a rigor, jogam bilhar à volta de uma luzida mesa de pano verde, bem como no meio de uma rua do Bairro da Liberdade.

“Capoeira”: os exercícios na praia, o espectáculo. Será que se deve considerar uma forma de dança? Ou uma modalidade de performance, pelo menos? Geralmente chamam-lhe arte marcial, mas não tem importância. Há coisas que, sendo o que são, não precisam de ser arte.

Assisti a uma aula de swing baiano – swing moleque – numa Academia junto à Praia do Porto da Barra. Vi a noite inteira cheia de gente a dançar no Pelourinho, nas discotecas. É portanto possível dançar assim, indefinidamente, e sorrir. Não, não é sorrir. É rir.

(Isto vai contra princípios básicos que estipulam que o acesso às pistas de dança esteja reservado a zombies, andróides e tolos ou ingénuos que se ignoram.)

Mas porque é que eles riem? Será que são felizes? Pergunta inquietante.

Há tantos tipos de música que o meu sólido ouvido ainda não consegue distingui-los. É música permamente. Tanto me basta.

Vou tentar acrescentar ainda mais alguns lugares comuns. É provável que isto também seja um progrsso. Aqui entra uma lista de palavras que designam comidas ou conceitos demasiado subtis para que os consiga entender ou definir: moqueca, problema de atraque, caruru, abafe, bóbó, vatapá, poderosa casquinha de siri.
Eu sei: a miséria massiva, a catástrofe das crianças, o caos do sesemprego, tudo ao mesmo tempo. Mas isso já seria abrir uma nova prateleira na estante da sociologia. E eu nem sequer quero falar das igrejas e dos museus.

Perdoem-me, por hoje, ter-me dedicado apenas à vida artística.

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Alexandre Melo, “Em São Salvador da Bahia”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº24,  Lisboa, Maio 1999

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