PARA RUI CHAFES, EM 1988



Rui Chafes. “Vertigem V”. 1988/89. © Fotografia: Blue Photography Studio (Cepeda)


A palavra arte deve ser associada a intransigência. As coisas que faça o que se chama artista têm de ser a prova de uma inteligência, sentimento, vontade, paixão, obsessão. As coisas que faça o que se chama artista servem para dar mais perplexidade e expectativa a uma presença, mais riqueza e complexidade a um problema, mais inteligência e densidade a uma cumplicidade, mais intensidade e necessidade a um sentimento. Em linguagem muito simples: servem para tornar excepcional a relação com as coisas, as imagens das coisas, isso a que se chama mundo ou os outros. Ou ainda, em linguagem menos singela: demonstrar a coincidência do belo, do bem, do útil e do verdadeiro.

A consciência ou o sentimento de excepção e intransigência estão antes de qualquer produto ou produção.

Inevitável característica das primeiras obras de um artista: serem as primeiras, um mostrar-se a crescer, como mostrar o próprio corpo a crescer. Saber dos perigos, confrontar o medo, defender o segredo sem desistir de o entregar ao mundo.

Um artista novo reconhece-se no impulso generoso para revelar o segredo de ser o portador de um novo segredo. Tem de gerir o medo e a coragem para não ficar aquém da revelação. Tem de guardar pudor e recato diante das circunstâncias para não se estragar. Precisa de uma enorme arrogância para não ser confundido com outro qualquer e precisa de se manter perfeitamente vulnerável, diante de todos, para que os que serão o seu destino o reconheçam e acolham sem suspeita.

O segredo de que o artista novo é portador mantém estreitas relações com a revelação de um corpo que sabe de certeza sentida que está a crescer em amor, mas não sabe como bem porquê nem para quê.

Os objectos do artista não são perguntas, nem respostas, nem comentários. Afastam-se das formas dos objectos comuns não apenas para não poderem ser confundidos com eles mas para não poderem ser vistos segundo os usos de veros objectos comuns. Afastam-se das formas abstractas consagradas para que ninguém pense que uma forma bem acabada pode alguma vez constituir, só por si, um motivo válido de satisfação. Afastam-se da escala razoável e ameaça nas conveniências dos sítios que as acolhem para que seja notório que não são razoáveis e não buscam nem o seu próprio confortável equilíbrio nem uma equilibrada harmonia com as paredes e os olhares que as rodeiam. Têm a escala explodida do que é, tem de ser e não pode ser. Dão conta de uma instância originária puramente abstracta, fonte de uma energia decisiva. Cumprem-se num trabalho expansivo e excessivo de desocultação e construção: do fechado ao aberto, da intimidade à exposição, da unidade à proliferação, da luz e da cor protectoras à claridade sem dó. Uma obra. Um corpo de destemor e amor oferecido e abandonado ao mundo.

In Catálogo exposição “Espaço Poligrupo”, Renascença, Março de 1988


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Alexandre Melo, “Para Rui Chafes, em 1988”, in Arte Ibérica, Ano 5, Nº42,  Lisboa, Dez / Jan 2001


EFRAIN


O Observador. 1997.


O trabalho do jovem artista brasileiro Efrain Almeida tem podido ser visto regularmente em Portugal na Galeria Canvas, no Porto. Aqui, falamos de uma exposição recente na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo.

A montagem da exposição assenta numa relação de simetria entre os trabalhos expostos nas duas paredes que se opõem frontalmente. De cada uma delas irrompem dois pequenos colibris, captados de asas abertas, como que em pleno voo. Dos seus pés partem longos e finos fios vermelhos de canutilho, que descem até ao chão e depois se estendem pelo solo até ao centro da galeria.

Estes fios, ao mesmo tempo que unem cada um dos pares de aves, traçam, no chão da galeria, o contorno vermelho de dois desenhos que quase se tocam. São estes fios que transformam cada par de pássaros num verdadeiro par: lado a lado, unidos por um fio de sangue ou por um fim de alegria. O simples desenho delineado no chão consegue mobilizar todo o espaço da galeria, envolvendo o espectador e conduzindo o seu olhar e os seus passos.

As manchas que as linhas desenham são como as sombras de um voo que os pássaros, presos à parede, não podem soltar, mas conseguem, deste modo, sugerir. Ou como os limites das margens de dois lagos que, no chão da galeria, tanto podem ser uma evocação da natureza, como a evocação de um lago de puras emoções.

Os pássaros, tal como as outras esculturas apresentadas na exposição, são de madeira (cedro) esculpida à mão. No trabalho de Efrain Almeida é nítida a influência do artesanato popular característico da sua região de origem – o sertão do Ceará, no Norte do Brasil – e da sua tradição familiar – o pai era carpinteiro e a mãe costureira. A qualidade oficinal do trabalho transmite-lhe uma excepcional sensibilidade matérica e textural – uma sensibilidade ecológica, poderíamos dizer –, que torna estas esculturas simultaneamente simples e sofisticadas, poderosas e vulneráveis. Nelas encontramos o eco da modelação infantil de brinquedos artesanais, mas também da estatuária religiosa popular – extremamente rica no Brasil – e particularmente dos ex-votos.

No entanto, aquilo que é decisivo nestes trabalhos, e lhes dá a sua marca distintiva e a sua originalidade no riquíssimo panorama cultural da arte brasileira, é a capacidade de Efrain Almeida para superar aquilo que poderia ser uma mera adaptação de tradições ou referências locais, e conseguir dotar a sua obra de uma intensa carga dramática e pessoal. A obra de Efrain é um notável exemplo de uma articulação entre “arte erudita” e “arte popular” que, não pretendendo submeter uma à outra, e rejeitando esta antinomia, acaba por se conseguir afirmar, de um modo plenamente criativo, enquanto “arte contemporânea”.

O cunho original do trabalho é obtido através de uma notável inteligência espacial, como já vimos, e de um agudo sentida da delicadeza. Efrain trabalha com sugestões, insinuações, possibilidades de significação. Nunca com evidências, citações ou redundâncias. O seu trabalho sugere a possibilidade da emergência ou manifestação de um sentimento – o amor, o prazer, o sofrimento, a dor, a comunhão com a natureza, o medo da morte – mas nunca o impõe como uma evidência ou como um tema a comentar.

As três esculturas que completam a exposição, apresentadas na parede entre os dois pares de pássaros, são um bom exemplo das principais referências e preocupações que alimentam a obra do autor. Duas das esculturas são pequenas figuras humanas, cujos corpos se entrecruzam com troncos de árvores. Numa delas, o tronco de árvore prolonga-se, como desenho ou tatuagem, nas costas da figura. Numa outra escultura, duas cabeças são unidas por um ramo, oval, com a forma de uma coroa de espinhos. Os rostos das figuras, como noutros trabalhos do autor, podem ser vistos como auto-retratos.

A ligação directa à Natureza, pressuposta no material escolhido e na maneira de o trabalhar, completa-se nesta representação de uma fusão física entre corpo humano e árvore, carne e madeira. A marca da vida especificamente humana, animal, é talvez concentrada nas pequenas marcas de cor que, por vezes, assinalam os olhos ou os lábios. A representação do sangue é remetida para a cor vermelha dos fios de canotilho.

Mas estes homens-árvore são também, os portadores de referências religiosas católicas: a madeira da cruz à qual foi pregado o corpo de Cristo; o tronco do martírio de São Sebastião; a nudez do corpo, a nudez da madeira, a marca das feridas. Um universo de imagens religiosas que podem estar também muito próximas de figuras do imaginário sexual. Mas também aqui, nas possibilidades de conotação sexual de alguns destes trabalhos, o que nos surge não é a evidência das marcas da sexualidade, mas antes a sugestão de uma sensualidade física em que a pura vibração sentimental é tão importante como a pulsação física, matérica.

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Alexandre Melo, “Efrain”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº41,  Lisboa, Nov / Dez 2000