WARSZAWA




Miroslaw Balka. ©SusanaPomba


Vi o Papa. Ao vivo. Passou por mim no Papamóvel e não se mexia. Não acenou com a mão nem mesmo muito devagar. Não se lhe viam as mãos. Não abanou a cabeça nem mesmo muito devagar. O rosto extenuado na máscara do esforço que fazia provavelmente para se manter em pé.

Foi numa das avenidas centrais de Warszawa na tarde do dia 11 de Junho de 1999. Ao longo de todas as largas avenidas centrais de Warszawa, cordões plásticos de brilhante azul, pontuados duzentos em duzentos metros por jovens soldados polacos vestidos de camuflado, louro cabelo rente à cabeça, boina azul mar. Só a presença de Sua Santidade saberia inspirar parada de tão comovente pureza.

A mesma presença poupou-me os excessos alcoólicos que a fama da tradição polaca quase me fizera recear. Em atenção à visita do Papa foi proibida a venda de bebidas alcoólicas com mais de muito poucos degraus. Só cerveja. No restaurante onde jantei com Miroslaw Balka pedimos uma cerveja. Depois pedimos outra. Já teve de ser sem álcool porque já não era o primeiro dia de visita do Papa e a cerveja tinha-se esgotado. Na Galeria Foksal, a galeria histórica das vanguardas plásticas contemporâneas na Polónia, fundada em 1966, ofereceram-me vodka. A tradição foi respeitada. Elogiei a beleza sóbria das caixas que guardam os arquivos da galeria. Fiquei a saber que tinham sido feitas por Krzytof Wodiczko quando ali era jovem artista (ver “October”, 38, fall 1986).

Passei o dia a conversas com Balka com vista à escolha das obras destinadas à exposição “Lost Paradise” (Miroslaw Balka e Zhang Huan, Galeria Presença, Porto, Semtembro/Outubro 1999).

Uma das obras propostas por Balka foi uma pequena escultura da parede em que um suporte de aço sustém um círculo de cera no meio do qual está colada uma pastilha elástica mastigada.

A escultura deve ser colocada na parede à altura da boca. Chama-se “28x12x15” e traz-nos, pela via mais inesperada, o registo da máxima intimidade. A proximidade absoluta da boca que mastigou uma pastilha elástica. O mais pessoal e o mais abandonado dos restos. Que os adolescentes às vezes guardam em pequenas caixas. Um resto humilde, que no entanto transporta e preserva as marcas de uma boca.

Um pólo de tensão nervosa: cerrar os dentes, morder a língua, cigarros. Mas também de escape gratificante, indulgência com os prazeres sensuais.

A boca. Lugar de três paraísos:
O paraíso religioso da comunhão com o corpo de Deus, através da hóstia consagrada;
O paraíso infantil da comunhão com o corpo da Mãe, através da amamentação;
O paraíso sexual da comunhão com o corpo de alguém, através do beijo, para dar só um exemplo.

Portanto: coincidência física e espiritual com o corpo, um corpo, mas que corpo de quem?

No dia da inauguração choveu muito no Porto. A escultura ficou húmida e um pouco viscosa. Na base formou-se um gota: de água?

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Alexandre Melo, “Campbell”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº29,  Lisboa, Novembro 1999

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