CASSOULET



“A clever cook puts unlikely things together. It’s called artistry”
(Mr. Spica, o ladrão, in The Cook, the Thief, His Wife and Her Lover, Peter Greenaway)


Peter Greenaway. The Cook, the Thief, His Wife and Her Lover. Film Still.


Arte e comida, os artistas perante a comida, a representação da comida, as receitas, os restaurantes e os convívios gastronómicos dos artistas. Um tema que dá para vários luxuosos volumes daqueles de capa grossa e com centenas de ilustrações em que se atravessa a história da arte a partir de um ponto de vista particular e supostamente original e estimulante. Desde os pormenores técnicos da representação realista dos alimentos, até ao significado social das tertúlias artísticas estabelecidas em torno de uma mesa, passando pelas implicações psicanalíticas da relação entre a alimentação, o sexo e a morte, as possibilidades de investigação histórica e especulação intelectual são múltiplas.

“Há uma coisa de que gosto muito num filme de Truffaut com Jean-Pierre Léaud, já não sei em qual. Ele trabalha num escritório de detectives com um velho detective que faz de seu professor e que lhe diz: ‘À quinta-feira há um cassoulet muito bom num pequeno restaurante na esquina do Boulevard Montparnasse com o Boulevard Edgar Quinet’. Depois o velho detective morre e o que parece horrível é que aquela sabedoria vai desaparecer. O ensino é realmente isto, é dizer a alguém que à quinta-feira há um cassoulet muito bom numa determinada esquina. (...) Isto funciona ao nível do Clube dos Cinco. Há os que sabem que aquele cassoulet é bom, e mesmo que o cassoulet não seja bom isso é impensável porque aqueles cinco e apenas aqueles cinco sabem que o cassoulet é bom naquele local”. - (p.139/140). É uma observação do Christian Boltanski inserida num debate sobre a questão do ensino artístico orientado e publicado por Thierry de Duve (Faire École, Les Presses du Réel, Paris, 1992).

Na sequência do debate Thierry de Duve insistirá na valorização do modo iniciático na aprendizagem do métier de artista, acrescentando que aquilo a que Boltanski chama o Clube dos Cinco é o que ele próprio chama tradição e os outros poderão chamar vanguarda.

O aspecto fundamental que aqui nos importa reter – e que a equivalência de termos sugerida por Duve vem reforçar – é que a circunstância de saber onde, quando, com quem e o que se come, surge como elemento identificador de um saber e de um estatuto social específicos. A transmissão de uma informação preciosa sobre o modo de comer surge como um protocolo ou uma condição de admissão num circulo restrito de eleitos, ou seja, como um indicador da concessão e do reconhecimento do estatuto de pertença a um grupo especial: o grupo de artistas.

A comunhão alimentar propicia a demarcação de um grupo que através deste ritual se instituiu como grupo separado do conjunto de sociedade, definindo, como qualquer elite, uma fronteira de exclusão ou uma barreira à entrada que consiste na detenção de uma informação que dá acesso a uma experiência convivial restrita.

Em relação ao modelo heróico do artista como ser de excepção, isolado na sua Torre de Marfim, há uma deslocação: da individualidade para a convivialidade. O auto-centramento dá lugar ao espírito de grupo. Estamos agora a lidar com o modelo do artista gregário, tendencialmente elitista – a elite pode ser a tradição, a academia, a vanguarda, o grupo, o lobby ou mesmo a boémia marginal – socialmente orientado para um tipo especial de convivialidade que é, também, um modo de preservação e reprodução dos atributos distintivos e a afirmação do correspondente poder dos artistas, enquanto grupo.

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Alexandre Melo, “Cassoulet”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº33,  Lisboa, Março 2000


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