ENTRE O BONÉ E OS TÉNIS



Galeria Graça Brandão, Setembro 2015
Tiago Alexandre






QUEM, EU ?                                                   
                          
TIAGO ALEXANDRE, na sua primeira década de atividade como artista e curador, afirmou-se como um dos nomes mais sólidos da geração “SUB 30”, que chegou à maioridade no novo milénio. A conjugação da diversidade de recursos formais com a consistência e complementaridade das problemáticas evocadas, torna a obra de TIAGO ALEXANDRE especialmente aliciante em termos de descoberta de um autor singular mas também de possibilidade de abordagem do nosso atual “ar do tempo“.
A primeira exposição individual na Galeria Graça Brandão é plenamente representativa dessas diversidade e consistência.
Em termos materiais constatamos um igualmente eficaz domínio do video (original ou apropriado), pintura (pasta de óleo sobre papel), desenho (neste caso escrita sobre a parede e sublinhe-se o carater manual e repetitivo desta escrita) ou objetos escultóricos (modelados ou apropriados). Em todas as modalidades de trabalho destaca-se a importância concedida aos ritmos e padrões (encenação dos tempos da perceção e atenção) através de um rigoroso controle do som e da luz que constituem uma espécie de guia invisível para a visita à exposição.
Quais são as temáticas entrelaçadas que a exposição nos sugere ? A resposta pode começar pelo título : “ENTRE O BONÉ E OS TÉNIS“.
Entre os ténis e o boné geralmente está um corpo, talvez um corpo relativamente jovem , mais propenso a este tipo de adereços, talvez um corpo com um razoável potencial de crescimento e transformação. É o que se chama processo de socialização e construção da identidade individual que, sendo permanente, não deixa de ser mais intenso em determinados períodos. Aqui surgem as referencias à singularidade de uma trajetória biográfica que, por ser (como todas) única, não deixa de remeter para experiencias tão universais como as da família que a cada um calha (“Mom & Dad“, “Dancing Days“), as aventuras e desventuras dos jogos juvenis e a invenção e encenação de si próprio, enquanto formas de negociação e relacionamento com as instâncias de autoridade em geral.
A invenção e encenação sociais de si próprio são indissociáveis da relação com objetos, como bonés, chapéus, camisetas ou motorizadas, que, hoje em dia, são também indissociáveis de um culto das marcas, cuja importância simbólica e cultural vai muito para além do simples marketing económico. Sem esquecer que as marcas são também entidades gráficas, sempre envoltas em música e luz. Vemos referências a Los Angeles, pátria do estrelato holywoodesco, banhada por um oceano que não chega a Sacavém. Uma cabeça apreensiva coberta de diamantes (?). Vemos um percurso infinito dentro de um labirinto de que nunca se sai mas onde mesmo assim se encontra um “smile” (“Stand by Me“, lembrem-se do filme e, já agora, de River Phoenix). Disseram-me que este labirinto costuma ser habitado por “monstros mutantes” que aqui não se vêem talvez porque foram substituídos por nós. Nós, os visitantes, a quem por certo se dirigem as frases inscritas nos bonés.
“ Every move you make “, “ Every word you say  “. Quem, eu ?

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Alexandre Melo, por ocasião da exposição de Tiago Alexandre, “Entre o Boné e os Ténis”, na Galeria Graça Brandão, Lisboa, Portugal, de 17 de Setembro a 31 de Outubro de 2015

COMO TRABALHA O PINTOR



(ALEXANDRE MELO E JOÃO PINHARANDA)

Pedro Calapez. Painel de madeira gravado e pintado. 1988


O artista está (pelo breve tempo de toda a sua vida) no lugar de deus. E não faz sentido entender esse assento como trono de um deus menor; nem se podem dividir as responsabilidades. Porque todas as suas obras são angústias sem partilha, dúvidas sem descontos – e porque só há lugares de solidão como recompensa da glória.
Vive numa época sem plenitude. Aspirar à construção do céu – como ele o faz – é um projecto de re-estabelecimento e salvação.

O céu é uma utopia de leveza. A temperatura da vigília, o conforto da imponderabilidade, uma paisagem infinita, uma cama lenta.
Mas não é imediatamente nada disto. O sentimento do céu é uma entrega e um abandono cuja integridade é assegurada pelo rigor das prévias travessias. A travessia dos raciocínios lógicos usados até aos limites epistemológicos de qualquer investigação. O confronto com a suspeita de que toda a ciência afinal decepciona.
Estas experiências intelectuais criam apenas a disponibilidades para um sentimento. É preciso continuar a ser metódico. Passar pelo tempo da exposição à exaustão das sensações: a sordidez e o luxo, a violência e o afecto, a dor e a comida. Os limites sabem-se, percebem-se, muito antes de atingir ou tentar inventar e essa antecipação cria a viabilidade da arte.
O realismo deste projecto de trabalho assenta no facto de não se apresentar alheado do mundo (da arte), de partir de cada um dos problemas nele existentes e forçar a sua superação. A sua integridade é garantida pela apresentação, no próprio processo de trabalho, de todas essas dificuldades e sucessos.

Ocupa o trono de um deus ausente ou morto e não é réplica da sua presença. Incerto do seu papel, do seu destino, dos seus poderes é um anjo inquiridor que se prepara para conhecer os segredos, dominar os gestos, possuir o fogo – tornar-se também infinito e fundador. Sabe como o seu estatuto é vulnerável: pode subitamente tornar-se num anjo caído. Impossibilidade de vencer a tentação do poder; impossibilidade de totalizar a criação. É sobre o fio deste duplo perigo que actua. Isto é uma atitude corajosa que anuncia uma escalada a partir da mais escarpada vertente, da mais lisa fachada: e o pintor não é anjo nem é operário.
A tarefa que se destinou não é, afinal, a de simular uma nova criação do mundo. A partir das instáveis imagens do existente tem sim inventado as imagens do mundo depois do mundo – o céu.
Os artistas são usurpadores de direitos e nenhum usurpador se deve deter na imitação dos actos do anterior monarca – contraria-os. A figuração do mundo já foi realizada e basta à nossa sobrevivência diária. O que não se verificou ainda foi a anunciada existência e glorificação dos lugares e das dimensões do real depois do real; ou seja, a figuração do céu. Uma parte significativa dos artistas trabalha, desde sempre, sobre este projecto: quando buscam, em cada músculo de um atleta, a própria ideia de vitória; quando procuram, sob os azuis enganosos do céu, o dourado coração da omnipotência divina; quando descobrem os arcanos do universo na geometria das suas composições. Mas querem apenas aproximar-se do que sabem (acreditam) existir para além deles, independente deles. Trata-se de um percurso de submissão.
Agora somos nós a inventar o próprio céu – porque podemos também estabelecer um fim para o nosso mundo.

O assunto é a criação do céu.
À partida não se trata de emoções metafísicas nem de abstracções líricas. Trata-se de mãos, madeira, papel, grafite, pastel, gestos repetidos em função de efeitos e objectivos deliberada e sistematicamente procurados.
O céu do artista é o resultado de um processo físico de produção material. Um céu feito à mão. Uma pessoa compreende que o ar à sua volta não lhe presta. Junta e movimenta as mãos e os gestos para separar as brisas, as linhas e as correntes, discernir e discorrer os tons e as inclinações propícias, camada sobre camada, linha sobre linha, afeiçoar-se o céu.
O processo material da criação do céu é inversamente proporcional à evidência da sua representação. A abertura do campo de experimentação sensual é o oposto do cliché. Porque o céu não tem medidas. É uma espaço virtual em que tudo existe como eventualidade e evanescência. O artista recusa os clichés da representação e a vacuidade de uma emoção psicologizante.

O processo desenvolve-se em função de regras de compatibilidade estética entre um determinado sentimento e determinadas estruturas formais.
A geometria é uma das vias. O rigor de um sistema lógico que tem as vantagens da clareza de um número limitado de princípios e da generosidade de um número infinito de possibilidades combinatórias. As limitações são as do elevado grau de formalização e arrefecimento do resultado final. A matemática não é celestial porque não é um afecto.
Uma outra via faz recurso à experiência das formas do mundo. Aqui se manifesta uma exclusão, a da figura humana, que tem um significado essencial à compreensão da natureza do céu em questão. Um céu de fusão que opera por absorção e dissolução. Pacificação radical. A casa do pai.

As formas eleitas são paisagens naturais ou estruturas arquitectónicas que surgem como reminiscência e evocações depuradas da pintura e iconografia religiosa tradicionais. Ou objectos isolados com referentes do mesmo tipo mas de leitura mais indeterminada e que desempenham uma função de suporte e sinal em relação a um espaço que os transcende.
O exercício fundador experimentado é um trabalho de invenção a partir de uma memória.
A memória é um lastro terreno, adquire-se no que se viu, no que se viveu e no que esperou. A memoria facultada a estes desenhos é restrita e selectiva: é uma memória que se esqueceu primeiro das palavras, depois dos homens, finalmente das próprias coisas e objectos. É um enorme buraco cheio de contornos luminosos e de luminosidades.
Os contornos são as auras dos objectos que transportam já no mundo a memória do céu: um templo, uma casa, ou um túmulo; um cálice, uma fonte ou um espelho; uma escadaria, um poço ou um cofre. As luminosidades vêm das cores derramadas pelos objectos em dissolução sobre a superfície dos céus.

Um trabalho sobre o trabalho de deus: acelerar a expansão do universo até que os volumes se volatilizem, as arestas se separem, as superfícies se tornem translúcidas. Contrariamente, na infinitude do céu a presença das formas mantém-se. São escassas, apenas devido ao processo de concentração de energia física e a simbólica em cada uma delas – não suportam a proximidade umas das outras. Um trabalho ao contrário de deus: contrair o universo até que os sentidos das coisas atinjam uma densidade e um peso insuportáveis, até que a matéria do mundo se reduza aos seus elementos primordiais. Trabalhos sobrepostos.

Assim cumpre o pintor os caminhos da luz e da treva, da água e da terra, da vida e da morte – todos os caminhos da arte (de deus): esconder e revelar, dar a ver e proibir.

Este céu vê-se de olhos fechados. Absorve e rodeia o homem. Os olhos do cosmonauta vagueiam perdidos do corpo, no espaço sem esperança


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Alexandre Melo e João Pinharanda, “Pedro Calapez: Desenhos sobre madeira”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1988