ONDE SE ENCONTRAM AS PESSOAS?







“People Meet in Architecture” é um título que se pode transformar numa pergunta. 
Como é que a arquitectura pode fazer com que as pessoas se encontrem?



Como é que a arquitectura pode fazer com que as pessoas se encontrem? A pergunta aplica-se à arquitectura real e às exposições de arquitectura.

Em ambos os casos a resposta é fugidia. No caso das exposições a experiência diz que a arquitectura não é fácil de expor. É preciso ver os edifícios ao vivo, ou melhor, viver os edifícios, porque ver não é suficiente, e/ou acompanhar a prática de trabalho em ateliê e na construção. Mas isso é ser arquitecto ou ser cidadão e aqui falamos de uma exposição, de exibidores, alguns talvez exibicionistas, e visitantes, por vezes espectadores.

Para um não especialista, como é o caso, as exposições de arquitectura são um desafio, já que até há pouco predominava uma combinação de desenhos técnicos, maquetas elementares e lugares comuns filosóficos que a um leigo pareciam ilegíveis, enfadonhos ou irrelevantes.

Ainda se encontram exemplos deste tipo mas entretanto diversificaram-se as formas de expor e, com a generalização do filme, imagem digital e novos materiais, a exposição de arquitectura atingiu um grau de espectacularização comparável ao de qualquer outra disciplina.

Diríamos mesmo que a arquitectura – tal como o cinema, por outras razões -, dada a sua dupla natureza indissociavelmente social e estética, tem vocação privilegiada para convocar diferentes tipos de conhecimentos, artes e tecnologias. Esta Bienal, dirigida por Kazuyo Sejima, poderá representar um marco na história das exposições de arquitectura. Uma Bienal com amplo recurso a colaborações e contribuições de artistas plásticos, cineastas e outros criadores.

No Arsenale, Olafur Eliasson encena uma espécie por luz estroboscópica que desenha formas no espaço. Objectos de Tom Sachs, inspirados em Le Corbusier, fotografias de Walter Niedermayr (no Irão) ou Luisa Lambri, uma instalação sonora de Janet Cardiff ou um texto em néon de Cerith Wyn Evan, são outros exemplos.

Uma adquirida capacidade de espectacularização transdisciplinar não assegura só por si a eficácia comunicacional ou a densificação de conteúdos. Em muitos casos a multiplicação de imagens em movimento, ecrãs coloridos de computadores ou modelizações e experiências de alta tecnologia, torna-se tão ilegível quanto os velhos desenhos técnicos, tanto mais quando se faz acompanhar pelos mesmos lugares comuns filosóficos. Nesses casos é difícil não concluir que um livro e um DVD seriam mais proveitosos, poupando-se tempo, suor e deslocações. Nesta Bienal, regra geral, não é assim e temos múltiplas possibilidades de partilhar um entusiasmo criativo ou um prazer de descoberta que concretizam uma experiência gratificante de encontro entre pessoas na (exposição de) arquitectura.

Lugar de destaque para o pavilhão do Japão que apresenta o trabalho de Yoshisharu Tsukamoto (do Atelier Bow-Wow) e Ryue Nishizawa (fundador com Sejima do estúdio SANAA).

Um conceito simples e pregnante enunciado de forma clara e directa e exemplificado com uma diversidade de meios pertinentes, articulados de modo perceptível. O conceito de “metabolismo” e cidade “metabólica” (Tóquio) por oposição à cidade da monarquia (Europa, Paris, século XIX) e à cidade do capitalismo (EUA, Nova Iorque, século XX).

Decidi que tenho de voltar ao Japão para ver (ou viver) a arquitectura. Decisão confirmada pelos projectos japoneses apresentados no Pavilhão Central dos Giardini que mostram, com economia de meios e efeitos, o contexto, a visão e os contornos de obras como o Teshima Art Museum (Nishizawa), uma extraordinária “gota de água” na paisagem.

A propósito de apresentação perfeccionista, lugar de honra para os Aires Mateus. Rigor minimalista numa instalação de grande eficácia escultórica que veicula também a visão e o fôlego poético dos projectos.

Encontros

Um bom prólogo à representação oficial portuguesa na Ca Foscari. Quatro projectos habitacionais de Aires Mateus, Álvaro Siza, Bak Gordon e Carrilho de Graça, acompanhados dos correspondentes quatro filmes de João Salaviza, Filipa César, João Onofre e Julião Sarmento. Uma produtiva ideia curatorial que confronta quatro modos diferentes de ver (em arquitectura) a construção de habitações e quatro maneiras diferentes de ver (em cinema) essas habitações, com as maquetas a garantir a plena legibilidade dos conteúdos.

Salaviza prolonga o arguto olhar de Arena (curta que lhe valeu uma Palma de Ouro em Cannes 09) através de um dia na vida de um jovem que espera, entre a praia e o campo, familiares que não chegam a chegar. Também não chega a haver tensão dramática porque a psicologia é justamente substituída pela atenção contemplativa à paisagem que rodeia uma simples e notável casa dos Aires Mateus no areal da Comporta.

Para o famoso conjunto de habitação social SAAL Bouça, de Álvaro Siza, no Porto, Filipa César realizou um filme onde aplica a dialéctica exterior/interior característica de muitos dos seus trabalhos, através de um plano-sequência de 16 minutos em que integra o contexto político-social através de uma fotografia num placar e uma mensagem num atendedor num ateliê que faz parte do conjunto. Com a referência aos conflitos políticos dos anos 70 a autora sinaliza a sua atenção à história portuguesa mais recente.

Bak Gordon inventou um conjunto habitacional com características próprias no meio de um espaço entre prédio em Campo de Ourique. João Onofre, em seis minutos, inventa uma situação extrema e original – a instalação, com recurso a uma grua, de um iate na pequena piscina do complexo. A operação pode ser vista como um comentário a uma arquitectura que se constrói contra ou apesar do seu contexto (como me dizia Pedro Gadanha) mas também como uma homenagem à infinita liberdade da imaginação que está para além de todas as medidas e conveniências.

Para o irrepreensível desenho de uma casa de Carrilho da Graça na planície alentejana, Julião Sarmento, com uma extrema depuração do olhar, reúne três figuras femininas que funcionam como objectos inexpressivos cuja adequada razão de estar é sublinhar o protagonismo da casa, a energia das linhas da arquitectura e sobriedade da paisagem.

Uma inesperada presença de Portugal em Veneza na exposição (em estreia) de fotografias de Stanley Kubrick, entre as quais uma série realizada em Portugal em 1948 onde o seu sistemático poder de composição elegeu os habituais clichés da Nazaré e um passeio ou um arremedo de encontro sentimental na Baixa de Lisboa.

Arte e cinema portugueses voltaram a encontrar-se no Lido, no Festival de Cinema, na curta-metragem Painéis de São Vicente de Fora, Visão Poética, de Manoel de Oliveira. Uma solução simples e directa, de acordo com a radical originalidade do estilo do autor, para o clássico problema de saber como filmar uma pintura.

Ainda no Lido, outros exemplos de encontros entre cinema e artistas plásticos, com filmes de Isaac Julien (Better Life, onde conjuga a habitual sofisticação de estilo com um mergulho na cultura chinesa) e Douglas Gordon (k.364 a journey by train).

No Arsenale, um filme de Wim Wenders consegue ser entediante apesar de ser em 3D, ter só 12 minutos e ser dedicado ao belíssimo Rolex Learning Center (de SANAA, em Lausanne).

Seria mais fácil, mas menos estimulantes, continuar a falar da exposição e do festival e esquecer o outro lado, o lado real, da questão inicial: Como é que a arquitectura pode fazer com que as pessoas se encontrem?

Lembro-me de, numa conferência na Arrábida, ouvir Álvaro Siza dizer (cito de memória) que são as pessoas que fazem a convivialidade, não é a arquitectura. Já em Veneza comentava com Carrilho da Graça que a questão não tem resposta. Não se pode programar o fluxo dos hábitos, afeições e atracções que geram na experiência viva das comunidades espaços e lugares de encontro. Não há ciências nem técnicas do desenho de uma casa ou planificação de uma cidade que possam dar resposta à pergunta. A própria tentação de procura de uma respostas definitiva é suspeita de totalitarismo. Serve o bom senso esclarecido, que é o contrário da pretensão e da ignorância. Mas também é evidente que há questões sociais que não podem ser ignoradas, erros confirmados que não devem ser repetidos e reivindicações e aspirações concretas, em cada lugar, em cada caso e em cada comunidade que convém serem ouvidas e mantidas audíveis em pano de fundo do trabalho criativo do arquitecto.

Ocorrem-me os projectos de Lina Bo Bardi (SESC Pompéia, em São Paulo) ou o Pavilhão da Holanda que discute o que fazer com os edifícios vazios. Num debate em que Koolhas sublinhou a generosidade de alguns edifícios devolutos sobredimensionados “cujo carácter aberto deve ser mantido”, cito uma observação de Mark Wigley (Columbia University) em defesa da utilidade de um vazio liberto dos imperativos da eficácia: “No cinema clássico o signo ‘no vacancy’ muitas vezes dita a diferença entre a vida e a morte para personagens em situações limite”.

Um último caso exemplar. A instalação do estúdio Mumbai no Arsenale. De novo o entusiasmo, mas ainda mais concreto. Vontade de perceber como é feita a investigação, onde foram buscar e como se pode aproveitar tudo aquilo, saber como é que se usam aquelas cadeiras, janelas, escadas, varandas e outras coisas que não percebi o que eram. Julgo que era mais ou menos este o objectivo desta Bienal. Para mim funcionou em meia dúzia de casos, o que é uma boa média. Parece que também vou ter de ir à Índia.

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Alexandre Melo, “Onde se encontram as pessoas? 12ª Bienal de Arquitectura de Veneza”, in L+Arte, Lisboa, Nº 76, Outubro de 2010

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