O VIANDANTE ESCLARECIDO



Alberto Carneiro. As imagens do corpo e da paisagem. Vista da exposição: Os caminhos da água e do corpo sobre a terra. Porta33.



Muitas das minhas mais gratificantes experiências de relação com a paisagem natural tiveram lugar na ilha da Madeira. Recordo dezenas de passeios maravilhosos, em todas as acepções da palavra maravilhosos, em que, segundo a orientação de sábios amigos, fui assistindo ao desdobramento de surpreendentes visões que se substituíam umas às outras numa deslumbrante sequência de cores, cortes, perspectivas, sombras, cheiros, brilhos, silêncios.

Recordo uma inesquecível ascensão em que, numa mesma tarde, ao longo da subida, foram variando a luz, a imagem do céu e das nuvens, o recorte da paisagem lá ao fundo. Num momento, o sol brilha como numa manhã de Verão. Um pouco mais acima o céu transforma-se num mar de espuma. Depois, cai uma noite profunda. Logo a seguir é o sol que volta a nascer rasgando escuros embrulhos de nuvens. Continuamos a subir, o ar fica mais frio e a luz começa a ganhar uma intensidade própria que já quase não deixar ver nada. É apenas luz. As nuvens dissolvem-se num céu que se estende como um lençol imenso cujo limite não se pode já dizer se é a orla de uma outra longínqua montanha ou um mar ou talvez um outro céu.

Foi também na Madeira que tiveram lugar as minhas primeiras longas conversas com Alberto Carneiro, conversas sem nenhum objectivo concreto ou intenção pragmática, encaminhas pelas variações da luz, a cadência das lapas, dos peixes e dos vinhos, a passagem das horas. Conversas como algumas conversas às vezes sabem ser e sabem bem. Às vezes, as circunstâncias põem-se de acordo para gerar cruzamentos propícios e gostaria que fosse esse o caso deste texto.

O trabalho de Alberto Carneiro é o resultado de uma experiência pessoal de relacionamento de um artista com a natureza, nos termos em que ele a vive e entende, enquanto geradora de uma reflexão mais geral e de um processo de produção especificamente artístico, estético, se quiserem, de que acaba por resultar aquilo que nos é proposto e que nos habituámos a designar como sendo obras de arte. A mediação conceptual e estética faz com que as obras possam atingir um nível de generalidade suficiente para nos interpelarem, a cada um de nós, e a mim, em particular, no caso deste texto, de um modo também pessoal. Por isso me sinto autorizado a introduzir algumas deambulações preambulares que dão conta das minhas próprias experiências e questionamentos pessoais para os quais o trabalho de Alberto Carneiro tem constituído um interlocutor privilegiado, ou talvez melhor, na ocorrência, um inspirados companheiro de viagem.

Muitas vezes, durante os meus passeios, quando sou levado a deter-me perante uma visão e um sentimento que se me afiguram excepcionais, paro, tento abrir os olhos um pouco mais e, como quem respira fundo, enchendo os pulmões até ao limite da sua capacidade, pergunto-me o que é que será possível fazer para preservar aquilo, aquele momento, aquela consciência entre uma visão e um sentimento.

Uma experiência deste tipo, pode ter lugar em diferentes circunstâncias.

Por exemplo, numa grande cidade, no meio dos grandes volumes dos prédios, das linhas desenhadas pelos automóveis e da agitação de uma multidão de transeuntes. Mas ali, no meio da cidade, nem tudo parece ter de estar perdido. Há uma óbvia escala humana e é fácil admitir que a experiência poderá ser repetida. Estamos, apesar de tudo, perante um mundo de coisas que julgamos controlar.

Perante o mar, para dar um outro exemplo, simétrico, estamos no outro extremo do leque das possibilidades emocionais. O mar é, em si, uma forma infinita da liberdade e o poder do mar, por si só, pela grandeza da sua presença, transmite-se numa completude sem falhas a todos aqueles que o amam.

Mas não foi a experiência do mar nem das cidades que me conduziram ao diálogo com a obra de Alberto Carneiro e porque é dele que aqui se trata vou circunscrever a análise da referida experiência espacial de excepção aos domínios do reino vegetal da natureza.

Aquilo a que chamo o reino vegetal da natureza é um mundo de terras, árvores e ervas, verdes e castanhos, entre o chão e o céu, atravessado por traços de água, às vezes visíveis, audíveis, outras vezes subterrâneos.
Para mim este é um território de ameaças, mistérios e compilações em que tudo se afigura mais complexo e imponderável. Nada é livre e infinito como o mar porque tudo está preso a raízes e aos inexoráveis ciclos do tempo vital. Tudo parece imóvel e fechado sobre si próprio mas rapidamente descobrimos que as coisas se mexem por dentro de si mesmas, à sua maneira, e que, afinal, tudo é irrepetível e incontrolável porque sujeito às inclinações e caprichos do vento, da luz, das águas.

Uma cidade constrói-se ou destrói-se, o mar não acaba nunca, mas uma montanha, um rio, uma árvore, são muito mais complicados. Porque são descendentes da imortalidade e no entanto, não são eternos. Isto pode causar uma espécie de paradoxal claustrofobia cujas imagens mais comuns correspondem talvez às sensações de estarmos fechados dentro de uma árvore ou bloqueados por uma montanha intransponível. Mas, ao mesmo tempo, basta levantar os olhos para o céu ou encostar à terra o silêncio dos olhos fechados para pressentir que por ali passa, indesmentível, uma profunda promessa de paz.

O nó de sensações contraditórias que me aparece associado à experiência da natureza vegetal torna particularmente gratificante, quando levado a meditar sobre estas matérias, poder contar com a companhia de um viandante esclarecido como é Alberto Carneiro.

O trabalho Os caminhos da água e do corpo sobre a terra (2002-2003), concebido propositadamente para as salas do 1º e 2º andares da Porta 33 no Funchal tem como ponto de partida uma série de passeios pelas montanhas da Madeira e uma particular atenção prestada às levadas, uma forma tradicional de encaminhamento da água que é uma das mais características marcas da paisagem rural da ilha.

“O título Os caminhos da água e do corpo sobre a terra é um título abstracto que não remete para a Madeira objectivamente, pode remeter para qualquer sítio. Mas de facto este trabalho remete particularmente para a água das levadas e acima de tudo para a situação espacial que as levadas criam. É uma situação complexa na medida em que o problema da circulação da água é fundamental relativamente à localização do corpo sobre o espaço, isto é, relativamente à topografia da ilha e relativamente à necessidade da água como um elemento vital. Para mim as questões de vitalidade dos elementos são fundamentais e aqui jogou exactamente esse lado. Há também o modo como o espaço vai sendo organizado ao longo das levadas que tem a ver com o modo como a natureza se dispõe, quer relativamente a uma pequena intervenção do homem, que é mínima apesar de tudo, quer relativamente, digamos à própria situação do terreno e portanto ao modo como a natureza se vai organizando, depois, de uma maneira plástica, de uma maneira, diríamos, formal, no sentido da plasticidade, não no sentido da forma propriamente dita.”

A obra, que se distribuiu por três salas, é uma das mais completas e complexas que Alberto Carneiro realizou nos últimos anos e, na medida em que pode ser vista como uma obra de síntese em relação a muitas das suas linhas de pesquisa, constitui uma excelente porta de entrada para uma análise de conjunto.

A principal linha condutora da leitura desta obra é, literalmente, uma linha. O autor chama-lhe “linha do olhar: do corpo sobre a paisagem”. Ao longo das paredes das três salas pelas quais se distribui este trabalho o visitante é levado a percorrer, à altura dos olhos, uma linha composta por uma sucessão de fotografias ou desenhos que são uma reconstituição pessoal da experiência das caminhadas do autor.

A linha condutor da exposição é, assim, também, a linha do horizonte associada a uma experiência que foi a do artista e que agora é proposta ao observador com um horizonte de possibilidades. As fotografias não visam apresentar, nem apresentam, uma reconstituição imagética realista de um trajecto na paisagem. Não estamos perante uma atitude documental e a própria alternância entre o registo fotográfico e o registo, muito mais imponderável, do desenho feito à mão reforça a natureza aberta e reversível deste tipo de registo ou evocação.

Conforme escreves Gilles Tiberghien, analisando as teorias contemporâneas da paisagem, “para ver uma paisagem precisamos de um certo recuo, de uma distância que não é apenas física mas também intelectual”. Ao percorrer uma paisagem, “temos a experiência das suas dimensões em relação ao nosso olhar e à sua complexa organização. A geografia das formas capturadas pelo nosso olhar móvel determina o enquadramento. A vontade de se aproximar ou de se afastar, ou de produzir uma representação da paisagem, permite-nos compreender a dialéctica corpo-horizonte que lhe é inerente. A travessia é física tanto quanto mental; e pressupõe técnicas de distanciação, diário de bordo, caderno de esboços, ou técnicas de “transposição paisagística” como as que se praticam no Japão”. O mesmo autor fala-nos de “artialização” (artialisation) da paisagem um termo que Alain Roger (Les théories du paysage en France (1974-1994), Seyssel, Champ Vallon, 1995) foi buscar a Montaigne e sublinha o facto de artistas como Richard Long ou Hamish Fulton terem “devolvido (redonné) à paisagem uma realidade mental” (in Critique, nº613-614, Junho/Julho 1998, Paris).

Os métodos de trabalho utilizados por Alberto Carneiro asseguram e ampliam um espaço de distância, especificamente plástica, em relação ao que seria o registo documental de uma viagem, para que, nessa distância e através dessa distância, possa surgir o espaço que permite que a linha a que nos vimos referindo se transforme, no momento actual que é agora o da visão da exposição, na linha do horizonte do visitante. Um espaço suficientemente amplo para permitir, também, que a experiência do olhar e da caminhada nas salas da galeria induza a adopção do ritmo que torne possível ao observador ver para além das fotografias e desenhos que lhe são propostos e chegar a conseguir evocar e olhar para as suas próprias memórias de relacionamento com horizontes comparáveis aos que agora se lhe oferecem. A altura da colocação e a dimensão e espacejamento da sucessão das fotos e desenhos foram determinados para se adaptarem ao ritmo natural de quem passa, olha e deixa passear o olhar: naturalmente.

Mas as imagens propostas nas fotografias e desenhos não esgotam a oferta contida nesta primeira linha de leitura desta obra. Duas frases, com a simplicidade complexa que é característica da escrita do autor, dão-nos as hipotéticas chaves de leitura da exposição. As frases são: “no horizonte do teu olhar és o ser desta paisagem” e “em ti vida fará deste momento a tua arte”.

Procuremos então desdobrar as hipóteses de significação que estas frases desenham.

“No horizonte do teu olhar és o ser desta paisagem”. Quem é que diz esta frase? E a quem? É o artista que fala para o observador, no âmbito de uma relação entre o autor e o seu público. Neste caso, o autor declara a identidade do observador com aquilo que vê que é simultaneamente uma obra de arte e uma paisagem. O observador é chamado pelo artista a fazer parte da arte e da paisagem, a ser arte e paisagem. O autor está no lugar de comando. Mas, ao mesmo tempo, a declaração por ser lida como uma citação daquilo que, segundo o artista, lhe teria sido dito pela própria paisagem. Neste caso, quem fala é a própria paisagem que interpela, primeiro, o artista, e depois, convocada por este, interpela o público. Segundo esta hipótese é a própria paisagem que comanda o processo. É ela que, por assim dizer, põe  o artista no seu lugar e o que este faz é elaborar plasticamente o seu lugar de modo a poder partilhá-lo com os que visitam a sua obra. O artista esteve, e continua a estar, no essencial, no mesmo lugar que o seu público. O lugar de quem, através do olhar sobre a paisagem é chamado, pela paisagem, a ser paisagem.

“Em ti a vida fará deste momento a tua arte”. Conciliando as duas hipóteses de interpretação da frase anterior, diríamos que este “momento” é, quer o momento primeiro do olhar do artista sobre a paisagem, quer cada um dos momentos actuais do olhar de um observador sobre a “linha do olhar” desta obra. O que permite a identificação entre os dois momentos é a colocação destas experiências sob a égide de uma categoria geral e abrangente: a vida. São a presença, a manifestação e a expressão da vida que fazem a arte, que permitem acrescentar a um momento ou dotar um momento de um suplemento (de vida) que o desloca para o lugar a que se chama arte. A possibilidade de ocorrência desta deslocação dependa da capacidade de quem olha (público ou artista) para, num determinado momento, dotar a experiência do seu olhar de uma intensidade de vida suficiente para se identificar plenamente com o horizonte desse olhar. Nesta perspectiva, o lugar de comando é sempre o lugar de quem olha: do lado da vida.

A experiência desta obra, a que Alberto Carneiro gosta de chamar “envolvimento”, uma designação que prefere a “instalação”, uma expressão hoje mais utilizada, não se esgota nos exercícios de dedução e especulação a que até agora nos dedicámos. O que lhes dá sentido é a riqueza e a diversidade dos elementos físicos e materiais que completam a obra e o modo como eles se distribuem de acordo com a estrutura dos espaços de exposição. São estes elementos palpáveis, tangíveis, com cor, cheiro, volume, que permitem que o projecto conceptual acima sugerido faça sentido, ou seja, posso chegar a ser pensado através da experiência dos sentidos.

Os elementos reunidos em cada uma das salas, segundo diferentes combinações escultóricas, adequadas às características arquitectónicas do espaço e à sequência de visita à exposição, são, no essencial, ramos de árvores, paus e ramos de urze, com os quais se constroem os volumes escultóricos e arquitectónicos que encaminham os passos do visitante.

Terra e barro servem de suportes e são também os portadores das marcas do corpo do autor. Jogos de vidros e espelhos, estrategicamente colocados em cada uma das salas ajudam a redesenhar o espaço, redesenhando itinerários, e multiplicam os possíveis jogos de olhares, através da alternância entre transparências e reflexos em espelhos, estes últimos constituindo ainda uma importante forma de inclusão na exposição imagem do próprio visitante.

A diversidade dos elementos utilizados neste envolvimento escultórico e a sofisticação das suas diferentes combinações espaciais abre caminho a uma deambulação retrospectiva que nos conduz a algumas obras fundamentais e emblemáticas do percurso de Alberto Carneiro, do qual se apresente uma significativa e representativa selecção no Museu de Arte Contemporânea – Fortaleza de São Tiago, no Funchal.

“Uma das minhas preocupações é trabalhar com o espaço que me é dado. Se a obra é concebida para o espaço onde a vou mostrar e eu conheço previamente esse espaço, a obra, naturalmente, tem essa componente. Essa é uma das preocupações que atravessa o meu trabalho: o espaço gera a forma, mais do que a forma gera o espaço. Interessa-me muito mais a relação que é estabelecida no espaço do que aquilo que se estabelece de modo intrínseco a cada uma das formas. Nesta medida, cada exposição é para mim um acontecimento, uma coisa nova.”

Começamos pela última sala do último andar do Museu, que acolhe a peça mais recente, Meu corpo vegetal (2001-2002), concebida propositadamente para este espaço.

“«A peça apareceu naturalmente em função do espaço da sala do Museu do Funchal que eu queria ocupar. Digamos que o primeiro dado para essa peça é a sala. Depois era o material que eu tinha disponível, na sua maior parte material que me foi dado por Serralves, proveniente de um castanheiro que secou. Comecei então a trabalhar em função do espaço e cheguei ao número 7. Assentei que o número de elementos tinha de ser um múltiplo de 7 e acabei por ficar com 49 elementos. Trabalhei com os 49 elementos todos ao mesmo tempo sem qualquer programa. À partida ainda não havia nada, o resultado só começou a surgir mais ou menos a meio da gestação. E não há aí habilidade nenhuma do ponto de vista da feitura manual. A mão é capaz de não andar muito por aí. Anda a árvore e depois a leitura que cada elemento natural me fornecia como energia que naturalmente decorre da árvore. Sobre isso sei alguma coisa, como é que a árvore cresce, como é que se desenvolve, que forças é que ela, a partir do momento em que é cortada, começa a gerar de dentro para fora, como é que ela se rompe a si mesma para responder às solicitações da mudança de estado, a passagem de uma coisa que era viva para uma coisa que deixou de ser viva. A seiva já não corre, passa a reagir de outro modo. Toda a estrutura da obra, elemento a elemento, começa a surgir em função destes dados que vão sendo jogados. Depois há referências variadíssimas, referências culturais a vários lugares, por exemplo um barco, uma tartaruga, são referências muito claras a uma situação espacial determinada, remetem para um jardim em Kyoto que já visitei várias vezes e tem para mim um significado muito especial. Mas não há nenhumas correspondências formais directas, estritas. Há a reminiscência e, neste caso, a referência, não sendo formalmente óbvia, foi reconhecida por uma pessoa que tinha estado comigo no jardim: "Parece-me a tartaruga e o barquinho." — Pois é, é isso mesmo.»

Uma primeira visão geral de Meu corpo vegetal impressiona-nos pelo rigor da composição formal e implantação espacial que a faz aparecer como uma obra que poderia ter sido concebida segundo princípios matemáticos de serialidade, simetria e repetição. No entanto, quando nos aproximamos de cada um dos 49 elementos que compõem o conjunto escultórico, o que se afigura mais marcante é a ex- actidão sensível da modelação que parece assentar numa cumplicidade física com a estrutura da matéria-prima, os fragmentos do tronco de uma árvore, um castanheiro, como se a mão apenas ajudasse a exteriorizar a pulsão escultórica implícita no modo de vida da própria árvore.

O efeito de comunhão que resulta do estabelecimento, às mãos do escultor, de uma aparente cumplicidade física entre a madeira das árvores e as formas das esculturas, como se tivesse sido a árvore a pedir a forma que a faz escultura, é uma das marcas distintivas da prática de escultor de Alberto Carneiro e um dos mais persistentes motivos de fascínio associados ao seu talento. É o exercício de um saber oficinal de escultor, esclarecido pela procura de uma cumplicidade espiritual, que nos permite compreender o trajecto que une o trabalho concreto com os troncos de árvores a uma mais vasta conceptualização das questões da constituição de uma identidade humana, na sua relação com a arte e a natureza.

«Eu diria que o grande tema do meu trabalho é a árvore, a árvore no singular, como substância em si, que naturalmente habita a floresta. A árvore como arquétipo de uma cultura e de uma civilização. Eu acho que as identificações profundas são indispensáveis para cada criador. As pessoas só criam a partir dessas identificações, seja com o que for. Naturalmente, as minhas identificações decorrem da minha experiência de vida. Se eu tivesse vivido sempre num meio urbano naturalmente as minhas identificações seriam de outra ordem. Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Inclusivamente, se eu tivesse nascido noutra civilização ou noutra altura as minhas motivações seriam de outra ordem. Há aqui a busca do caminho artístico, ou da realização artística, que passa por esse processo de identificação profunda que cada um tem de assumir no seu próprio corpo, entendido aqui o corpo globalmente. Não estou a falar apenas do corpo físico, estou a falar essencialmente do corpo mental e do corpo subtil. É um movimento que nós fazemos no espaço relativamente ao tempo, são as deslocações, porque, no fundo, curiosamente, não é o tempo que organiza o nosso espaço é o nosso espaço que organiza o nosso tempo.»

Meu corpo vegetal, na linha de um vasto conjunto de trabalhos realizados ao longo dos últimos vinte anos — como por exemplo Evocações d’água — a partir de determinadas madeiras ou determinadas árvores específicas, dá-nos a dimensão manufactural de um trabalho de identificação, des-construção e re-construção estética da e com a árvore concebida como arquétipo.

No outro extremo do arco cronológico da carreira do autor encontramos O canavial: memória / metamorfose de um corpo ausente (1968), uma peça fundamental da história da arte portuguesa da 2.ª metade do século XX. Aqui encontramos também uma apropriação de materiais vegetais naturais — canas — mas neste caso não se trata de um objecto natural (um tronco ou uma árvore) que se transforma num outro objecto, artístico, através de um trabalho de modelação escultórica.

Com O canavial estamos perante um ambiente ou um espaço natural que, através de um trabalho de conceptualização e deslocação metafórica, se transforma num ambiente ou espaço artístico: uma instalação ou um envolvimento construído com a utilização de materiais naturais.

A disposição no espaço e a forma de organização da circulação do visitante têm aqui um papel fundamental. O fulcro da evocação e convocação não é um objecto mas um lugar, um estado de espírito associado a um lugar e o que ele recorda ou suscita como campo de possibilidades sentimentais. Ao contrário da árvore, arquétipo polarizador, o agrupamento de canas não é o acontecimento mas apenas a pontuação que circunscreve o lugar dos acontecimentos. Os sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes na paisagem (1975) é um trabalho em que se assiste ao desenvolvimento desta hipótese. Quase poderíamos dizer que um envolvimento como O canavial é uma cenografia escultórica para uma performance que não é mais do que a nossa presença de visitantes vivos, criaturas dotadas de olfacto e memória.

«O canavial é na minha obra o momento da grande revelação. Sei o momento exacto em que apareceu, a 12 de Dezembro de 1968 às 14h30 no meu quarto em Londres. Apareceu como um flash, e o título da obra também apareceu imediatamente (O canavial: memória / metamorfose de um corpo ausente) e tem efectivamente a ver com a minha primeira experiência sexual, isto é, com a minha primeira noção de sexualidade que decorre de uma brincadeira de crianças. Foi uma espécie de acordar, uma coisa que se impôs imediatamente, ou melhor, que criou um pólo complementar em relação àquilo em que eu estava então profundamente envolvido que era a cultura erudita. Foi uma chamada para qualquer coisa que tinha a ver com uma experiência estética de outra ordem. É por isso que O canavial é para mim uma obra fundadora. Não tanto por muitas pessoas pensarem que é uma obra muito apelativa, do ponto de vista da forma, mas porque está também associada àquela outra dimensão.»

Julgamos que a riqueza e especificidade do trabalho de Alberto Carneiro resulta da sua capacidade de convocar e articular de um modo consistente diferentes registos de aproximação artística à natureza e à paisagem que, a maior parte das vezes, nos aparecem separados, se não mesmo apresentados como antagónicos ou incompatíveis quando descritos de acordo com algumas das mais comuns e simplificadoras arrumações estético-teóricas. Enumeremos alguns dos filões que podem ser evocados:

— a tradição da escultura em madeira, privilegiando a capacidade escultórica de modelação manual e enaltecendo os valores telúricos da ligação aos materiais e formas orgânicas da natureza;

— o experimentalismo vanguardista da land art, dando a primazia à experiência directa da relação física entre o artista e a natureza através de viagens ou caminhadas de que as obras de arte surgem, sobretudo, como um testemunho;

— a arte conceptual e a sua preocupação de inscrever em cada obra de arte uma auto-reflexão sobre o processo de conceptualização e o processo de significação que lhe permitem apresentar-se como obra de arte;

— uma tradição de especulação metafísica relativamente à natureza, tal como ela se manifesta, designadamente nalgumas correntes de pensamento orientais.

Julgamos, no entanto, que se quisermos compreender a unidade profunda do trabalho de Alberto Carneiro deveremos procurá-la não tanto através de uma sempre possível combinatória aplicada de categorias críticas classificatórias mas através da identificação de uma forma peculiar de relacionamento e busca de coincidência entre a memória de uma experiência sensível de imersão total num espaço natural e uma actividade concreta de produção e análise de formas (físicas ou discursivas, objectos, imagens ou textos) em função de determinados espaços e materiais dados.

Ao mecanismo fundamental através do qual se opera esta identificação chamaríamos reminiscência produtiva.

«Há uma coisa que decorreu exactamente das minhas viagens nas levadas. À partida não estava no programa, mas entrou. Tem a ver com algo que percorre o meu trabalho que são as reminiscências. Mantenho que, no plano da criação poética, aquilo que flui como base, como raiz, como energia inicial, é sempre apoiado numa experiência prévia, numa experiência que, à partida, não é consciente, não é consciencializável e só o passa a ser a partir do momento em que se torna evidente. Por isso achei que era fundamental ter uma experiência de tradução da paisagem. A obra que resulta como realizada é aquela que é estabelecida entre uma, entre aspas, autenticidade profunda, e uma verificação mental processual. Para se fazer a obra não chega apenas a intuição, o sentimento, a sensação, é preciso assumir mentalmente e culturalmente esse processo e decantá-lo.»

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Alexandre Melo, in catálogo da exposição na Porta 33 e no Museu de Arte Contemporânea do Funchal, Alberto Carneiro, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2003

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