O QUE A ARTE FAZ À POLÍTICA



À 29 edição, comissariada por Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, a Bienal de São Paulo retoma um lugar de referência entre os grandes eventos do mundo da arte contemporânea.

Uma selecção rigorosa com critérios claros (não ao eclectismo) e um elevado grau de consciência. Uma montagem com arquitectura sistemática (por vezes talvez demasiado) e bem ritmada. O tema é quase tão previsível quanto inevitável, dado o estado dos debates actuais e dado o lugar único do Brasil: arte e política. A intenção (em grande parte conseguida) era evitar as abordagens mais estereotipadas do assunto e dar-lhe um fôlego poético prometido pelo saboroso título da mostra: “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”, do poema Invenção de Orfeu, de Jorge Lima. “Okwui Enwezor meets Catherine David”, tudo lavado e redimido pela grandeza da poesia do Brasil


Cildo Meireles. Abajur. 1997/2010

David Claerbout. The Algier’s section of a happy moment. 2008



Arte e política é tema propício a banalidades: arregimentação totalitária da arte à propaganda ideológica, decoração esteticista de pesquisas sociológicas incipientes, arremedos inconsequentes de activismo social ou provocação experimentalista gratuita.

Mas pode ser de outra maneira: quando a arte é entendida como uma forma de vida que é, por si mesma, sem deixar de o ser no seu contexto, uma alternativa à forma de vida que o espaço político configura. Então a arte ilumina a política e o resto e é forma ampliada da imaginação e liberdade: vida.

Na Bienal, dois destaques.

Abajur (1997/2010), uma obra-prima, mais uma, de Cildo Meireles. Subimos uma escada até uma plataforma que permite circular em torno de uma imagem a 360º (o “abajur”) de um mar mavioso no qual balança, avança, uma garbosa caravela. Depois percebemos que, sob o suporte, na base do “candeeiro”, homens empurram o mecanismo que ilumina a visão e “faz andar” o barco. Metáfora de origem e limite de tudo: energia, luz, arte e destino; memória, viagem, beleza e violência. Uma obra completa.

The Algier’s section of a happy moment (2008), de David Claerbout, projecção de imagens a preto e branco, que captam, a partir de diferentes pontos de vista, um único momento em que um grupo de homens alimenta gaivotas que voam sobre o telhado de um edifício.  A composição e a sequência das imagens criam um ritmo de poema visual hipnotizante. As personagens e os rostos de um instante suspenso vão-se destacando e contraponto em sucessivos jogos de olhares recortados entre o céu e os sorrisos, demonstrando que o vento sopra onde quer: a vida é mesmo a única coisa importante.

Mais alguns exemplos de momentos maiores: Steve McQueen (Static, 2009) filma a Estátua da Liberdade, gloriosa e vulnerável, Santa e Imperador, ao som ensurdecedor de um helicóptero que voa em seu redor. Miguel Rio Branco, com o filme Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (de uma “pixagem” numa parede do Bairro do Pelourinho), cria um objecto de preciosa devoção para quem saiba a paixão pela cidade de Salvador. Pedro Costa (O nosso homem, 2010) volta aos seus lugares, ao seu lugar, para mostrar uma forma da realidade, ou seja, um modo de ver que se confirma único. O que é isto, real?

Os limites das possibilidade políticas da arte também estão dentro da Bienal. Artur Barrio intitula a sua nova instalação Da inutilidade da utilidade da política da arte e coloca no chão armadilhas que levam o visitante a tropeçar em pequenos elásticos esticados à altura dos sapatos. Armadilha para o visitante mas também para o artista que, como contava a responsável de produção, durante a montagem tropeçou na sua própria obra.

Os limites reais da política da arte são demonstrados por Roberto Jacoby que propôs um espaço de efectivo debate político (um palanque) e acabou por o ver encerrado quando decidiu que esse espaço seria dedicado a propaganda da candidata presidencial Dilma. Neste período, a lei não permite propaganda em espaços públicos.

Onde ficar

Porque falamos de viver, importa falar dos Terreiros – na bienal, os espaços de convívio que servem para estar. Trabalhos notáveis de concepção de espaços por, entre outros, Ernesto Neto, Tobias Putrih ou UNStudio. Uma boa recordação, ao princípio do dia, deitado no interior do terreiro/cabana de Putrih, divagar na visão das visões de Apichatpong Weerasethakul (A letter to Uncle Boonmee). Outra notável intervenção espacial, uma arquitectura precária inventada por Carlos Bunga, uma espécie de “arcada” que redesenha o acesso à grande rampa que une os vários andares do edifício.

Ainda a propósito de viver, e viver o Brasil, ocorre ir viver uns dias para Inhotim, um lugar obrigatório nos itinerários do mundo da arte. Perto de Brumadinho, a uma hora de carro de Belo Horizonte (Minas Gerais), Inhotim compreende sete galerias com obras diferentes autores e 30 locais ao ar livre, ou pavilhões, dedicados apenas a um artista ou a uma obra. Um acervo de cerca de 500 obras a que se junta um jardim botânico. Há quem fale de uma Disneylândia artística (não sei se têm alguma coisa contra a Disneylândia) mas nenhum outro lugar foi tão generoso em edifícios, espaço e paisagem para a arte contemporânea.

Não é fácil escolher exemplos e é impossível descrever o efeito das obras no meio de uma envolvente tão excepcional. Talvez o bosque de barras de ferro que Chris Burden deixou cair do céu sobre um lago de cimento fresco. Ou o edifício construído à medida das obras de Adriana Varejão. A galeria cujas paredes interiores são a obra de Doris Salcedo. Ou o pavilhão que acolhe o tractor que Matthew Barney fez desfilar no Carnaval de Salvador.

Dois destaques para lugares onde dá vontade de ficar. O galpão Cardiff & Miller com uma instalação sonora com extraordinárias condições acústicas. E o conjunto de salas que recriam de modo real e participável as atmosferas das Cosmococas de Hélio Oiticica, incluindo a piscina, redes e (quase) todos os adereços e músicas adequadas.

A arte como forma de vida.

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Alexandre Melo, “O que a arte faz à política”, in L+Arte, Lisboa, Nº 77, Novembro de 2010

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