ANDRÉ GOMES – ILUMINAÇÕES



André Gomes. II Cenas da Vida Libertina (1994), da série "A Carreira do Libertino".


O Peregrino Impenitente

Era um Lotus castanho, veloz e rente à estrada. Aprumo no traje e arranjo de rosto e cabelos, irrepreensível elegância finissecular, ideal quase inverosímil na suja balbúrdia de uma faculdade lisboeta em finais de 70. Tratava-se de história de arte e o assunto foi justamente tratado num volume raro intitulado “Do Eterno Feminino” (com Rui Romão, 1978).

Ficou para mim esta primeira imagem, espero que não demasiado abusivamente recomposta no teatro da memória. Ficou, anos mais tarde, uma dedicatória que prolonga o programa do título e lhe dá desígnios de peregrinação: “do eterno feminino ao inferno masculino”. Entretanto passaram vinte anos e os vinte anos. E no entanto continuam a passar nas ruas e fantasias.

“The Pilgrimagemania” foi o primeiro encontro com o trabalho de André Gomes. Na Alternativa Zero, exposição histórica que fechou a nossa década de 70 e acertou o balanço do que aqui foram as vanguardas da época. Era já a encenação de uma trajectória biográfica, iluminada pela memória e a exigência de uma fruição estética da experiência humana.

Também sob a forma de uma série de montagens de imagens de base fotográfica.

Foto-Pintura / Colagem-Montagem

André Gomes é um dos artistas portugueses contemporâneos que mais sistematicamente usa as polaroids e a manipulação desenvolta de imagens de origem fotográfica como matéria-prima  fundamental do seu trabalho. Não se trata, bem entendido, de comemorar a proeza técnica ou a efeméride oficial.

Materiais e métodos serviam propósitos decisivos em relação à lógica profunda do trabalho de André Gomes. Permitiam uma abordagem pessoal às questões de constituição de um imaginário, no sentido mais literal de um conjunto de imagens que compõem um quadro de sensibilidade e de comportamento. Através de fotografias instantâneas, polaroids, registos de vídeo e múltiplas combinações de fotografias das mais variadas proveniências – da história da arte à publicidade, do instantâneo privado ao grafiti, do registo documental à encenação hiperbólica – o trabalho de André Gomes incorpora as actuais determinações tecnológicas, económicas e mediáticas dos processos de constituição do imaginário. Os modelos de sexualidade tornados disponíveis pelos media, os padrões de luxúria estética que nos restam das tradições cultas e eruditas ou as alucinações visuais da ficção científica massificada são alguns dos materiais bases manipulados por André Gomes numa exposição “An American Nightmare”.

As opções técnicas de André Gomes proporcionam os meios adequados à sua forma pessoal de articular a sua investigação e o seu imaginário com a realidade social e imagética circundante e com o imediatismo da experiência biográfica quotidiana. A transdisciplinaridade estruturante do método de trabalho de André Gomes – que cruza as lógicas da pintura, fotografia, cinema e vídeo – é um modo de encenação da singularidade da visão da situação no mundo.

O Triunfo de Fígaro

O Teatro é para André Gomes a forma superior de representação de si no mundo, elaboração da sua imagem de si próprio e, portanto, constituição da sua identidade pessoal no plano do imaginário e do desejo. Todas as estratégias plásticas e formais do trabalho de André Gomes estão assim submetidas a uma volúpia da teatralização.

As circunstâncias biográficas – uma actividade continuada como actor de teatro e cinema e “divo” – confirmam essa hipótese. Mas o que importa sublinhar é a importância estratégica, para a compreensão da trajectória da obra de André Gomes, das exposições de fotos privadas – instantâneos felizes – dedicadas à sua experiência do mundo e dos bastidores do teatro e da ópera. Exposições como “Imago Mundi” e “Imago Operae” – “Vera Mundi Imago” permitem-nos compreender o percurso que conduz à exposição-instalação “A Carreira do Libertino”, um dos momentos fulcrais da carreira de André Gomes. Explicitamente, André Gomes encena-se então como sujeito construído no e pelo teatro nos vários níveis e instâncias da sua subjectividade e sociabilidade: desde a interioridade mais narcísica ou alucinatória às mais mundanas modalidades de exteriorização social. A mais barroca casa das poses não é nem mais nem menos teatro que a mais secreta casa dos desejos.

Não: o teatro não é uma mania; o teatro é o que há. Por que o mundo não presta, convenhamos, e há quem diga que está cada vez pior.

Uma identidade construída através do teatro não prescinde de uma consubstancial duplicidade. André Gomes gosta de cultivar duplos e afinidades electivas. Os duplos começam por ser as personagens que representa: Mário de Sá-Carneiro com quem se encontrou no filme “Conversa acabada” e anos depois na série de trabalhos “Dispersão” é caso paradigmático. Mas também poderíamos citar o filme “Dom Jaime ou a Noite Portuguesa” de Noronha da Costa (1975).

Se quisermos equacionar o tema da duplicidade em termos sociais e políticos o problema que se põe é o da tragédia pasoliniana: a massificação mediática da imagética contemporânea, hegemonizada pela estética hollywoodesca, é ou não compatível com a preservação dos arquétipos de beleza depositados na história das artes e na evidência sensual do contacto humano entre corpos e rostos com diferentes modos e culturas?

Numa exposição como “An American Nightmare” André Gomes interroga o poder hegemonizador da estética publicitária americana. Em “Verbum et Cineres”, na ressaca da Guerra do Golfo, reivindica a reconciliação impossível do Oriente e do Ocidente. Perante a imagem do sudário pensamos em “II Vangelo secondo Matteo” ou “Sopraluoghi in Palestina” de Pasolini. A caridade cristã – na figura de Santo António – visita as paisagens destruídas de Bagdad, as ruas terríveis de Teerão e as amaldiçoadas crianças de Intifada. Ameaças escuras e pesadas querem tapar o paraíso. 

O Absinto Impossível

É evidente que Oscar Wilde pensava obsessivamente na figura de Cristo quando na prisão escreveu a Carta a Lord Alfred Douglas em que recordava o tempo em que a mesa estava sempre coberta de vinho e rosas. Isto é: não vale a pena pensar que se pode fazer a economia da cruz. Mas é possível re-encenar a crucificação. Conceder ao menos aos ladrões que enquadram a figura central a tensão e a grandeza criminal dos corpos vivos. André Gomes enfrentou o confronto inevitável na sua “Invenção da Cruz”.

Teremos de reconhecer que o tempo destes novos trabalhos é um tempo de melancolia. Descobrimos a casa habitada por bichos rasteiros que se instalaram a crédito no tédio. Alguns fantasmas oferecem já a sua desarrumada companhia e trocam chaves e fechaduras ao sabor de insónias e sonhos improváveis. Abrem-se caixas dentro de caixas que não guardam nada. De um pássaro só a sombra pousa no papel amarelecido pela mão que segura a pena. Também é preciso aprender o tempo e o seu resultado sobre as coisas a que nos habituámos demasiado.

O verde, verde da cor de luminosos olhos ou do mar, parece hoje inatingível no fundo do cálice embruxado.
Ma a cor impossível do absinto continua a brilhar, eternamente, nos olhos que nos olham ao fundo do espelho do Fénix Libertino.

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Alexandre Melo, “André Gomes – Iluminações”, no âmbito da exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão,1996

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