QUEM SOU EU?



Matthew Barney. De Lama Lamina. Carnaval de Salvador, Bahia, 2004.


Já uma vez expliquei, neste jornal, que no Brasil, e na Bahia em particular, me permitia uma suspensão da distancia analítica e prescindia mesmo dos devaneios intelectuais inerentes à observação sociológica. E, no entanto, na noite do sábado de Carnaval, estando sentado e ensonado no Campo Grande, em Salvador, a fazer horas para apanhar o primeiro «ferry» para Itaparica, senti o súbito impacto de uma questão que, como se costuma dizer, não deixa ninguém indiferente.

«Quem sou eu? Quem sou eu?»

Encaminhei-me para a fonte da voz e constatei que era acompanhado por alguns milhares de pessoas que se moviam na mesma direcção, embora, é certo, de uma forma bem mais ritmada e colorida do que eu.

A resposta à mãe de todas as perguntas estava perto, mas, para o efeito deste texto, vou deixá-la para o final.

A principal razão que me levou este ano ao Carnaval de Salvador foi a anunciada presença dos desfiles, a convite do Projecto Afro, de um cortejo dirigido pelo artista plástico Mathew Barney e o músico Arto Lindsay, duas figuras famosas da cena artística americana. 

Aguardei com expectativa a ocasião de avaliar se o pequeno mundo da arte contemporânea com sede nova-iorquina teria capacidade de deixar uma marca no contexto daquela que é, provavelmente, uma das maiores manifestações culturais populares de massas à face da Terra.

Barney é um dos artistas mais indicados para a tentativa. A sua obra, em que se destaca o ciclo de cinco filmes Cremaster (1994/2003), pode ser vista como uma exploração dos limites do exercício da actividade performativa dos corpos, considerados como objecto de um processo de metamorfose infinita. O ser vivo funde-se com o artefacto, o corpo acopla-se ao objecto, a acção transmuta-se em escultura.

O trabalho de Barney é também uma deriva em busca de elementos rituais, com os quais dá forma artística a uma mitologia individual megalómana.

O trabalho de Barney dissolve as noções tradicionais de escultura e cinema em favor de uma abordagem transdisciplinar em que a performance e o seu registo têm um peso cada vez maior. O Carnaval parece vir a propósito.

Como tema geral, perceptível no título «De Lama Lamina» foi escolhido o tópico politicamente correcto mais previsível: a ecologia, a desflorestação. Os habituais carros carnavalescos foram substituídos por tractores e veículos de mineração, um deles dotado de uma perfuradora. O tom geral era lamacento, com ausência das cores e brilhos que o Carnaval costuma inspirar. O traje desenhado para os participantes no desfile consistia num véu franjado, um «top» e uma pequena saia, brancos e esfarrapados, de inspiração tribal ou tarzanesca.

O principal elemento do desfile era um fragmento de árvore amputada do qual sobressaíam uns cotos brancos, ao estilo habitual de Barney, no meio dos quais fazia acrobacias uma mulher que sugeria uma mistura de Jane e Caliban.

Muitos esperavam uma exibição da espectacularidade neobarroca característica de algumas obras de Barney. Mas a opção foi a oposta. Não sei se o objectivo visado, ao trazer uma pequena lição artística americana de ecologia ao Carnaval de Salvador, era gerar um anticlímax, mas foi esse o efeito obtido. A coreografia era quase inexistente, e a música de Arto Lindsay soou anémica no meio da imensa energia do farol da Barra. O público reagiu com indiferença, como se fosse um intervalo, e assim foi. No ar continuaram a vibrar os ecos da timbalada e Carlinhos Brown.

Espero que o génio de Barney, que passou vários dias a fazer filmagens em volta do carro, lhe permita transformar numa obra-prima (um filme?) aquilo que não aconteceu nas ruas de Salvador.

Pequena caricatura nova-iorquina, Barbara Gladstone, galerista de Barney, faz-se fotografar com Björk, mulher de Barney, no espaço VIP do camarote da «Vogue».

Está na altura de voltar à questão inicial:
«Quem sou eu?»

A resposta é dada pelo cantor do cortejo africano Ilê Oyá e é qualquer coisa como isto:
«Um crioulo bonito que nem eu.»

Uma resposta que, na sua simplicidade aparentemente tautológica, resolve vários problemas relacionados com as noções de identidade e comunidade.

Todos somos crioulos, todos somos iguais, porque somos igualmente diferentes. A reivindicação de uma combinação particular no âmbito de uma infinita variedade de tons é o fundamento de uma auto-estima de natureza estética («bonito») que faz desaparecer a contradição entre a pertença a uma comunidade global e a singularidade individual («que nem eu»). Ou seja: eu ou você no meio da multidão do llê.

Esperemos que Matthew Barney tenha aprendido a lição da Bahia.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 17 de Abril 2004, p. 30-31

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