O CORPO DA LUA



Rui Chafes. Durante o Sono. 2002.



Abre hoje ao público, no Nikolaj Contemporary Art Center, em Copenhaga, onde ficará até 12 de Abril, uma exposição antológica de Rui Chafes já antes apresentada no Esbjerg Kunstmuseum. Ontem, noite de inauguração, foi noite de Lua Cheia. A paisagem e a luz de Caspar David Friedrich e da Dinamarca, no Inverno, são um dos melhores cenários que poderíamos imaginar para a primeira mostra museológica do autor no estrangeiro.

Rui Chafes é um dos nomes mais importantes da arte portuguesa dos nossos séculos (XX e XXI) e um dos mais originais no panorama geral da escultura, hoje. A selecção de obras para esta exposição permite desenhar um trajecto de leitura em que o corpo é o ponto de partida e o ponto de chegada é, como não poderia deixar de ser, infinito.

Os corpos, tal como as obras de arte, são muito pouco mas são quase tudo o que temos.

Esta história começa ainda antes do movimento do nascimento. Houve um tempo em que não havia ninguém. Tudo o que tivesse que vir a haver estava então ainda dentro. Lá dentro era um sítio «doce e quente» (as expressões a negro são títulos das peças do autor). Rui Chafes tratou este problema nas suas primeiras grandes esculturas/instalações da década de 80.

A escultura Doce e Quente mostra-nos a vontade de não mostrar o que está lá dentro. Mas o artista sempre soube que a abertura, a saída, a queda não podiam ser eternamente adiadas. Mesmo este monstruoso insecto blindado começa a abrir-se, começa a ceder, vencido pelo peso do próprio sentimento que o leva a querer manter-se fechado.

Este é o lugar onde mais tarde teremos de voltar, mas antes de chegar a esse lugar são muitas as passagens e provocações pelas quais teve que passar a representação ou evocação do corpo em queda.

Usando uma linguagem literária é possível definir os seres humanos como anjos caídos que não se conseguem levantar, anjos escangalhados. As nossas cabeças não têm auréolas, os nossos ombros não têm asas, os nossos cabelos não têm luz. O simples facto de conseguirmos existir, tão pobremente despidos de qualquer atributo miraculoso pode ser considerado, em si mesmo, um milagre.

Para nos amparar, uma das melhores coisas que se inventaram foi a ideia do anjo a que muitos artistas justamente dedicaram muito do seu talento. Hoje em dia é raro porque quase nenhum artista se lembra de se ocupar de questões importantes. Rui Chafes é uma excepção e através das suas obras podemos acompanhar as passagens de um corpo.

Os limites da resistência e flexibilidade dos corpos e as possibilidades plásticas das suas acoplagens e correspondentes resultados formais, para além de poderem passar por ser uma definição de escultura, são também uma das principais metodologias utilizadas no trabalho de Rui Chafes.

Diferentes séries de esculturas exploram de maneira sistemática quer a prática da escultura entendida como teste aos limites da capacidade de manipulação dos materiais quer os possíveis exercícios e desenhos relativos à metamorfose, torção e fusão dos corpos.

Se insistimos em explorar os limites do corpo, ou a prática da escultura, acabamos por concluir que os corpos não nos levam suficientemente longe e a todo o momento correm riscos de fractura ou desagregação. Há sempre o perigo de uma escultura falhar, se perder, se partir, apesar de todo o rigor do desenho e todos os cuidados da produção. O mesmo sucede com os corpos. Para evitar que eles se possam esvair é preciso pensar em formas de os segurar, conter, abraçar.

É claro que esta deficiência dos corpos se poderia resolver se fosse possível descobrir o segredo da filigrana de cristal, a metalurgia da luz. Se fosse possível desenhar o paraíso das linhas milagrosas por onde corre o sangue: antes do sangue chegar.

Mas isso não é fácil e não é assunto para a escultura. Talvez para a poesia, dizem, iludidos, os mais crédulos.

É preciso continuar a caminhar. Com Unsaid é possível voltar a estar lá dentro sem deixar de estar cá fora devido a uma engenhosa construção formal e, sobretudo, devido ao desdobramento permitido pelo uso da voz e do texto. Unsaid é um trabalho realizado em colaboração e em que o visitante tem de se colocar dentro de uma estreita construção em ferro para poder ouvir e sentir a intimidade de um texto escrito e lido pela artista irlandesa Orla Barry. A dificuldade, o mal-estar, a inibição funcional que fazem parte da experiência desta peça preparam-nos para o momento seguinte.

Depois de tudo aquilo por que tinha passado o artista voltou a abrir os olhos e sentiu que desta vez era quase a eternidade. Um exemplo daquilo de que estou a falar é a extraordinária escultura Aproxima-te, Ouve-me instalada por Rui Chafes, no Centro de Artes Visuais em Coimbra.

É o momento em que a mais pesada esfera (Durante o Sono) se eleva no ar e se transforma no milagroso espelho negro onde, pela última vez e, depois, pela primeira vez e para sempre se pode ver o rosto da Lua e o rosto de todos os seres amados.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 7 de Fevereiro 2004, p. 38-39.

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