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Andy Warhol. Lupe. 1965

A exposição «Into the Light; The Projected Image in América Art 1964-1977», oriunda do Whitney Museum, em Nova Iorque, e agora apresentada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, é uma exposição histórica especializada, com uma função didáctica e contextualizadora em relação a um conjunto de tendências e experiências que, ao longo da última década, vêm sendo divulgadas, reconhecidas e vulgarizadas a um ritmo cada vez mais rápido. Quando olhamos para os trabalhos dos jovens artistas que hoje utilizam o vídeo com a mesma naturalidade com que noutros tempos se pintava a óleo é importante saber que o seu trabalho vem na sequência lógica de quase meio século de pesquisas como aquelas de que aqui se apresentam alguns bem escolhidos exemplos. Por isso esta é uma exposição indispensável.

Uma das obras mais inestimáveis incluídas nesta mostra é o filme Lupe, de Andy Warhol, habitualmente integrado no que, no cinema de Warhol, se chama a «Trilogia de Hollywood», em que se incluem também Hedy e More Milk Yvette. Este conjunto de filmes dão-nos a justa medida da importância da mitologia de Hollywood para a compreensão da arte pop em geral e do conjunto da obra e da atitude criativa de Warhol em particular. Nestes filmes, mais do que em qualquer outro momento da sua obra, Warhol lança as bases de um trabalho de desconstrução da ideia de «star» que é uma notável introdução à era do vedetismo de massas em que hoje vivemos.

Se quisermos compreender as origens e o alcance das implicações sociais e culturais da pop é indispensável aprofundar a sua relação com a história do cinema e de Hollywood e do seu triunfo enquanto expressão mais forte de uma nova forma cultural popular e global. O cinema e os modelos de Hollywood e do cinema clássico americano, massivamente divulgados através da televisão e do sistema da moda e da mundanidade, criaram uma nova forma de imaginário e um novo tipo de processos de construção cultural identitária, em termos colectivos e individuais.

A pop não pode ser plenamente compreendida sem um articulação com temáticas oriundas do cinema, designadamente as questões do «star system» e dos novos regimes de identidade decorrentes de uma cultura regida pelo império das imagens. «Desde o pós-guerra, o lugar do cinema na cultura tornou-se preponderante, exemplar, nomeadamente graças ao sucesso com que fundou uma verdadeira cultura universal, aliando pela primeira vez uma audiência popular a uma forma artística que não perdeu por isso a sua alma. É com um cinema que satisfaz ao mesmo tempo as exigências da arte e do público que a arte pop se vai medir» (Catherine Grenier, in catálogo Les Années Pop, Centre Pompidou, Paris, 2001).

A fixação de Andy Warhol na fama, no «star system» e nas actividades mundanas, que ocupavam uma parcela substancial do seu tempo, tem um contraponto paradoxal e perverso. Ao submeter imagens famosas aos seus métodos e processos de pintura, mecânicos e impessoais, Warhol acaba por, ao mesmo tempo que as glorifica, as banalizar, ao colocá-las em pé de igualdade com todas as outras imagens que ele trata exactamente da mesma maneira. Tornar banal o que era excepcional e tornar excepcional o que era banal são dois movimentos de um processo de distanciação que define, afinal, o ponto de vista de Andy Warhol sobre a sociedade contemporânea: crítico segundo uns, apologético segundo outros. Os três filmes referidos são inspirados, respectivamente, nas vidas de Lupe Velez, Hedy Lamarr e Lana Turner. Lupe tem a particularidade de ser o último filme que Edie Sedgwick fez com Warhol, sendo que Edie foi a encarnação máxima da ideia de «Warhol Superstar» ou «Underground Superstar». A ideia de uma espécie de «superstar» alternativa consistia, no essencial, na deslocação da ideia e imagem de «star» do âmbito da estética e indústria mais convencionais de Hollywood para o âmbito de uma cultura artística e mundana marginal em que se inseria o conjunto das práticas artísticas de Warhol e daqueles que então o rodeavam.

A dimensão desta deslocação torna-se ainda mais decisiva devido à natureza ambígua do estatuto da representação em todo o cinema de Warhol. De facto, os filmes de Warhol colocam-se numa situação intermédia entre a ficção e a realidade. As pessoas são pessoas reais – Edie Sedgwick é real – mais do que personagens e, no entanto, não estão a agir naturalmente, estão a agir como se estivessem a representar ou, no caso concreto destes filmes, estão a agir como se fossem «stars». Poderíamos dizer que os filmes de Warhol são documentários sobre pessoas que estão realmente a comportar como se estivessem a representar. É isto que provoca o perturbante e paradoxal efeito de realidade dos filmes de Warhol.

Edie, em Lupe, faz aquilo que qualquer pessoa poderia fazer num momento em que se quisesse imaginar como uma «star», cultivando a banalidade decadente e tangencialmente elegante do quotidiano que a mitologia hollywoodesca lhes atribuiu, sem excluir a indispensável dimensão trágica e autodestrutiva.

Hedy e More Milk Yvette, filmes menos acessíveis que tive oportunidade de ver no Warhol Museum, em Pittsburgh, sugerem esboços narrativos mais densos. Em ambos os casos encontramos grupos de figuras que circulam em torno de uma figura feminina obcecada pela ideia de beleza. A cleptomania e os julgamentos de Hedy e a sucessão dos maridos de ambas são o pretexto narrativo mínimo para uma série de cena des-compostas em que os corpos, os olhares e os gestos (comer, beber, vestir, despir, fumar, beijar) se procuram sem exaltação mas também sem nunca abdicarem da possibilidade de um sentimento ou de um momento de beleza. A sensação mais forte e mais inesperada que me acompanhou nessas horas solitárias na escuridão de uma sala de visionamento foi a impressão de que aquelas pessoas tinham sido realmente filmadas na desarmada procura da expressão de um sentido superior de si próprias. Um sentido que, talvez por não existir, só se pode procurar no lugar de um processo de representação. A procura torna a sua forma mais exacerbada, ou mais patética, quando se persegue a tarefa de construir uma imagem de si próprio que seja a imagem de uma «star».

Neste sentido, as «stars» de Warhol, muito mais que a verdadeiras «stars» de Hollywood -  as irrepetíveis «stars» do cinema clássico americano -, dão-nos talvez a primeira imagem do modelo do vedetismo de massas que hoje anima o processo de construção da identidade de milhões de pessoas guiadas pela ideia de celebridade.

Com a vantagem, que é o superior exclusivo de Warhol, de uma distância infinitamente terna que faz com que o que poderia ser um exercício de mimetismo ou paródia se transforme num quase religioso exercício de respeito pelo sentido de uma presença humana «sem sentido».


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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 13 de Novembro 2004, p. 40.

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