COMO É QUE SE VÊ UMA VOZ?




Vasco Araújo. Recital. 2002


Podemos considerar que «ter visões» ou «ouvir vozes» são experiências que pertencem a um mesmo, eventualmente aliciante, horizonte de possibilidades. Julgo, no entanto, que um maior e mais raro desafio corresponderia à ambição de «ver vozes».

O universo da ópera é, com certeza, um dos lugares mais apropriados para explorar esta hipótese. O enquadramento arquitectónico (as grandes casas da ópera), cénico (no palco, na plateia, nos camarins ou nos camarotes nunca deixamos de estar em pleno teatro) e cenográfico (entre a memória dos luxos de outras eras e as invenções futuristas de sucessivas actualidades) só por si só já proporcionam à música e às vozes uma imponente moldura.

Para além da moldura, a figura central em torno da qual se decide a questão da visibilidade da voz é, necessariamente, a figura da «diva»: a imagem do corpo que transporta a voz, se é que não é, pelo contrário, a voz que transporta o corpo, ou os corpos, mas isto é uma questão que terá de ficar para os especialistas.

Esta dúvida relaciona-se com uma instabilidade de fundo que aflige a figura da «diva» e que lhe desenha uma aura muitas vezes maldita, cujo poder de atracção ou a simples proximidade são susceptíveis de gerar vertigens.

O corpo ou o rosto, as mãos, os lábios ou os olhos da «diva» são «mais» que a voz, porque lhe dão uma «imagem», mas serão para sempre menos que a voz, porque são «apenas imagens». Não são a voz.

Questões como estas são tratadas, por exemplo, e é um dos melhores exemplos que conheço, no cinema de Werner Schroeter, designadamente nos seus filmes «sobre» as «imagens» de Maria Malibran ou Maria Callas.

São também questões como esta que constituem uma das melhores pistas de aproximação ao trabalho de Vasco Araújo, um dos nomes mais convincentes da nova geração de artistas portugueses da primeira década do novo século.

A primeira exposição individual no estrangeiro teve lugar na Galeria Yuill/Crowley, em Sidney, na Austrália, em paralelo à participação na Bienal de Sidney, 2002, a convite do organizador, o inglês Richard Grayson. Não sei se devemos atribuir algum simbolismo especial a esta presença na Austrália, mas os antípodas parecem um lugar propício (sempre é o lugar que fica mais longe de Portugal) para sublinhar um trajecto internacional que se começou a desenhar quando a «curator» espanhola Rosa Martinez escolheu a peça «Diva – A Portrait» para integrar a exposição «Transsexualexpress» (Barcelona, Budapeste, Corunha). Esta instalação é uma simulação de um camarim de ópera com todos os adereços habituais e mais alguns objectos masculinos que introduzem um elemento de ambiguidade sexual. Nas paredes, uma série de retratos do autor posando como «diva».

O universo da ópera é a referência central do artista, trabalhado sob múltiplas formas, que incluem o vídeo, a fotografia, a escultura e um trabalho específico sobre o som, dando origem, nalguns casos, à criação de instalações que nos aparecem como salas ou ambientes cenográficos exaustivamente elaborados. Um exemplo recente é a instalação «Recital» (2002), que recria a atmosfera de uma sala de concerto e, na complexa multiplicidade dos elementos que a compõem, funciona como uma espécie de análise estrutural – desconstrução e reconstrução – das várias instâncias de criação do significado que se articulam em torno das imagens, vozes, sons e texto do espectáculo operático.

Vasco Araújo, que estudou, vive e trabalha em Lisboa, marcou presença com uma performance de grande efeito espectacular, na inauguração da Galeria Filomena Soares (2001), em Lisboa. Esta temporada, o autor estará também a trabalhar em residência em Houston, Estados Unidos da América. Trabalhos mais recentes integraram a exposição «Melodrama», itinerante em Espanha (Vitoria, Granada, Vigo), e foram apresentados este ano em Istambul e no Bard College (Estado de Nova Iorque). Novas obras podem ser vistas no Project Room da próxima Feira de Arte de Colónia ou, desde já, na exposição correspondente à atribuição do Prémio EDP Revelação 2002, recentemente inaugurada na SNBA.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 18 de Outubro 2003, p. 42.

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