PAULO NAZARETH




ARTFORUM
Dezembro/December 2014


Paulo Nazareth, CA - for BLACK 2014


Quem entrou no Galpão durante a inauguração começou por sentir um som e um cheiro: o som de um canto pouco usual e um cheiro de comidas caseiras. O aroma era de comida tradicional brasileira oferecida num banquete familiar aos visitantes. O som da instalação sonora (em diálogo com o de um vídeo apresentado logo à entrada) é o dos cânticos que acompanharam a cerimónia de aceitação do artista (Brasileiro de Minas Gerais com ascendência europeia, indígena e africana),  como membro de uma tribo guarani-kaiowa. Che Cherera, título da exposição, significa na linguagem da tribo “o meu nome é” e funciona como um cartão de apresentação deixado em aberto. A palavra xará na linguagem corrente do Brasil designa alguém com o mesmo nome ou com quem nos identificamos de modo fraterno. Qual é, afinal, a verdadeira identidade do artista?

O nó mais profundo da problemática da exposição consiste no reconhecimento e na experiência da dificuldade ou impossibilidade de dar uma resposta categórica e definitiva à questão da identidade. O processo de trabalho do artista toma a forma concreta da viagem, deambulação, recolha e acumulação de objectos (pentes, sabonetes, pacotes de açúcar, abóboras ou maçarocas de milho), imagens (14 vídeos e 35 fotografias em registos simples a preto e branco), resíduos, lixos, recordações ínfimas e humildes da passagem por países, locais, ruas, rios, poeiras, mares, entradas de hotéis caros ou quartos de hotéis baratos . O autor designa o conjunto dos seus trabalhos por Cadernos de África, entendidos não como um tradicional caderno de desenhos ou apontamentos mas como acumulação de memórias de viagens, designadamente pelo Brasil, América Latina e África.
Nesta exposição, as trajectórias convergem numa pesquisa em torno daquilo que nos habituámos a ver, ou a não ver, aquilo que ainda não esquecemos, ou não queremos recordar, a respeito do que é ou foi “África” na nossa vida quotidiana, nas nossas memórias e estereótipos de percepção da realidade e da história.
Num saco amarelo ilustrado com o perfil do rosto de uma mulher negra lê-se “ arroz de grão longo Mama Africana Produto da Tailândia” sendo que o saco é um produto da Olam Moçambique em parceria com a Vodacom, que oferece um brinde aos compradores. Dois castiçais figurando criados negros estão dispostos sobre uma embalagem de cartão de um “criado mudo”, nome ainda hoje dado a “mesa de cabeceira” e que designava um escravo submisso. Um conjunto de figurinhas de teams de soccer Brasileiro são organizados segundo a gradação da cor da pele. Uma montagem de cartazes coloca lado a lado sorrisos de músicos e cantores, candidatos políticos moçambicanos e publicidade a produtos capilares quenianos. Mais adiante, numa fotografia, encontramos um cartaz em que o sorriso de uma mulher negra acompanha o slogan “Abre conta no Banco onde mais ganhas”.   Todas estas referências ao que o artista designa como a “África espalhada” são oportunidades de confronto com os nossos próprios clichés, preconceitos ou convicções. Por vezes o significado político das obras é mais evidente. Um vídeo em que um homem come terra refere-se a uma prática que visava permitir a reintegração nas suas comunidades de origem de antigos escravos regressados a África. Um vídeo em que o autor caminha recuando em círculos em volta de uma árvore evoca a prática de obrigar os escravos a circular em torno de uma árvore como forma de esquecerem o seu lugar de origem. 
Na enorme diversidade destes trabalhos o que mobiliza a nossa atenção de modo mais eficaz é o facto de a questão da identidade não ser apresentada como uma pergunta à qual pode ser dada uma resposta definitiva, mas como um processo de investigação, uma sucessão de viagens que se confundem com a própria trajectória de uma vida. Neste caso, literalmente, a vida do artista.
Quem visite esta exposição, se pensar na trajectória da sua própria vida, talvez descubra que aquilo que sentimos de forma mais profunda talvez não sejam convicções sistematizáveis em opções ideológicas, mas sons, aromas, imagens fugidias, pequenos objectos ou sensações muito fortes, mas não totalmente compreensíveis, que constituem o património mais genuíno das nossas heranças e esperanças. Vamos ficar à espera das próximas viagens de Paulo Nazareth. 

**********

Upon entering the Galpão during the inauguration of the exhibition the visitor is greeted by a sound sound of an unusual chant and the smell of home-cooked food. The aroma was of traditional Brazilian fare offered visitors in a family-style banquet setting. The sound came from a video installation shot entirely in the dark, making it a work to hear rather than see: Aprender a rezar Guarani e Kaiowá para o mundo não acabar (Learn to Pray Guarani and Kaiowá So the World Doesn’t End), 2013. The work documents the ceremony in which the artist, a Brazilian from Minas Gerais, of mixed indigenous, African, and European descent, was accepted into the Guarani-Kaiowá tribe of Mato Grosso do Sul. (Similar chants could also be heard in a sound work presented on headphones, Chanson de Voudou (Voodoo Song), 2013, also recorded with a group of Guarani.) In the language of the tribe, the title of the exhibition, “Che Cherera”, means “my name is” – and in a sense, it serves as an open calling card. It recalls the word xará, which in current Brazilian usage designates a namesake or someone with whom we identify in a close, family-like way.
Yet as it turned out, the most profound problem facing viewers was precisely the difficulty or even impossibility of providing a categorical answer to the question of identity. The artist’s work process took the form an actual journey, as he roamed, gathered, and accumulated objects: combs, bars of soap, sugar packets, pumpkins, sheaves of corn, images (fourteen videos and thirty-seven black-and-white photographs), residue, trash – all small and unpretentious mementos of his passage through and across various countries, streets, rivers, dusty roads, seas, entrances to expensive hotels, and rooms in cheap hotels. Since 2012, Nazareth has designated many of his works “Cadernos de Africa” (Africa Notebooks), characterizing them as repositories, of a kind, of his memories of his travels in Brazil, Latin America, and Africa.
CA – Mama Africa, 2014, for instance, is a yellow sack illustrated with the profile of a black woman’s face, which reads “African Mammy Long Grain Rice Product of Thailand”. The sack is merchandise from Olam Mozambique in partnership with Vodacom, which offers a complimentary souvenir to its buyers. Two candlestick holders depicting black servants (criados) are configured over a cardboard wrapping of a nightstand, or criado mudo (silent servant), as it is still called today the name a former designation for a submissive slave; this assemblage is CA – criado mudo, 2013. A set of figures of Brazilian soccer teams are organized according to gradation of skin color (CA – Figurinha repetida, 2014), while a montage of posters juxtaposes the smiles of musicians and singers, Mozambican political candidates, and ads for Kenyan hair products (CA – Samba, 2013-14); such references offer us opportunities to confront our own prejudices and stereotypes.
Another video, L’arbre d’oublier (Tree of Forgetfulness), 2013, shows the artist walking away from a tree in a spiraling path; it evokes the colonial practice of forcing slaves to circle a tree as a means of forgetting their place of origin. For Nazareth, identity is not a question with a definitive answer but rather a process of investigation, a succession of journeys that merge with the very trajectory of a life. A visitor to this exhibition, thinking about the path of his or her own life, might discover that what we feel most deeply may not be convictions systematized into ideologies but sounds, aromas, fleeting images, small objects, or highly powerful but not fully comprehensible sensations. These sometimes constitute the most genuine patrimony of our heritage and our hopes.


.........................................
Texto traduzido para inglês por Clifford E. Landers e publicado na revista mensal Artforum, na edição de Dezembro de 2014, por ocasião da exposição 'Che Cherera', (do Kaiowa “meu nome”), de Paulo Nazareth, na Galeria Mendes Wood DM (São Paulo), de 31 de Agosto a 25 de Outubro, 2014.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.