EU E O BEAU NA CIDADE QUE NUNCA DORMIU : NOVA IORQUE




“ -  I’m trying to recover.
   - From what, from life ? ”   
(de uma conversa com Borriss Mir)

Ele disse que se chamava Beau. Faz pensar em Beau Brummell, modelo insuperável de dias perdidos, Londres, final do século XVIII, dandies. Um século depois foi Oscar Wilde. No século passado, Andy Warhol inventou-se. Agora,    como é que se pode ser dandy em Nova Iorque no princípio do século XXI ?
 
A pergunta não é fútil porque (Hipótese 1) seria útil encontrar uma atitude que combine o distanciamento necessário ao exercício da inteligência (um estilo: um distanciamento estético; porque o distanciamento intelectual, dito crítico, é uma falácia) e a empatia com a infinita diversidade do mundo (cosmopolitismo), sem rendição ao obsceno dramatismo com que o mundo se expõe sob os modos mais  grosseiros. Para desenhar esta atitude as artes e ficções são talvez mais adequadas que análises correntes que pressupõem a existência da realidade que deviam produzir.
É  uma questão decisiva mas não adianta muito para este texto. Não é possível. Vale mais esperar pelos novos anos 20, pensar em decadências e smokings cor-de-rosa e comparar com Gatsby. Não era Beau mas sim Bo, como em Boris, o pai nasceu na Rússia, a mãe na Letónia. É um músico ou cantor ou apenas, como qualquer um, performer. O suficiente para me levar a sítios que estiveram e se calhar ainda estão em moda no Lower East Side.
Era para ser Brooklyn mas levaram-me para ali. Parece tudo igual a East Village, há 30 anos, quando fui pela primeira vez a Nova Iorque e me disseram, sem serem conservadores, para não andar pela Bowery, não passar para baixo de Canal Street e não ir ao Bronx. Era perda de tempo, não havia lá nada para ver. Não é nada tudo igual. É melhor porque estamos vivos e Nova Iorque é imortal. Nem todos os fundamentalistas do mundo, todos juntos, poderiam destruir o coração da liberdade. Hão-de morrer todos, um por um, porque a vida é a liberdade.
Nunca percebi como é possível não gostar de Nova Iorque. 

(Hipótese 2)
Nova Iorque não é o centro real de um mundo tão grande e tão global que já não pode ter centro. Também é cada vez menos, embora ainda o seja, o centro do mundo das artes, porque este se está a tornar, pouco a pouco mas depressa, de facto, o mundo. Depois do 11 de Setembro, acontecimento inaugural do século XXI,  Nova Iorque é apenas, mas de modo absoluto, o centro mítico (no sentido em que se fala de Atenas ou Roma) de um Império da Liberdade que se distingue pela capacidade de, enquanto forma cultural, acolher todos os que reclamam a liberdade do exercício da imaginação e o direito à procura da felicidade. A Internacional da Liberdade contra as Internacionais do Terror.
Um dos lugares chamava-se Hotel Chantele e havia um Frank a oferecer bebidas  a quem conhecia quem o conhecia. O costume. Há quem diga que nunca se é demasiado rico, nem demasiado magro. Não creio que se possa ser mais magro  que estes jovens que se alimentam de margaritas, saladas e migalhas de drogas. É sempre agradável estar na presença de um bando de frágeis tesouros. A quem não persiga o ouro da magreza, Nova Iorque oferece múltiplas possibilidades. Até é possível comer estrelas Michelin a preços relativamente módicos desde que seja à hora de almoço e se dispense o vinho e a sobremesa.
Fiquei comovido quando ao fechar da noite ouvi uma canção muito antiga chamada Let’s Dance. Se não estivesse sentado era capaz de ter dançado. Assim só me levantei para ir dali para um sítio que não tinha nome nem existia antes de pessoas mais ou menos recomendáveis que estavam na rua nos terem dito para ir lá ter dali a meia-hora que foi o tempo de montar uns plasmas, arcas frigoríficas, cadeiras desirmanadas e uns lençóis pendurados do tecto para criar ambiente. Um after-hours artesanal com cerveja barata e tudo.
Num outro dia, depois de almoçar, estava a chover e estava por ali numa esquina a discutir a questão da magreza com o jovem realizador Daniel Schmidt quando apareceu uma pessoa muito magra a perguntar onde é que podia comprar cigarros. Uma magreza e penteado peculiares, assim de tipo mais antigo e europeu.
Uns dias depois, na estreia de Antigone Sr. Twenty Looks or Paris is Burning at The Judson Church (L) no New York Live Arts, vi que era Rob Fordeyn, um bailarino belga tão admirável quanto Thibault Lac, francês, que (com Stephen Thomson e Ondrej Vidlar) faz o novo espetáculo (parte de um work-in-progress) do coreógrafo (e também bailarino) Trajal Harrell.
O que poderia ter acontecido se os bailarinos do Voguing no Harlem se tivessem encontrado com os bailarinos “pós-modernistas” do Judson Dance Theatre ?
Esta resposta passa pela tragédia grega e desfiles de moda. “Mais do que uma ficção histórica trata-se de transplantar a proposta para um contexto contemporâneo. Esta experiência era impossível nos Bailes ou em Judson, mas, aqui e agora, criamos uma terceira possibilidade” (press-release).
Numa conversa anterior ao espetáculo, Bill T. Jones referiu que seria interessante “levar este trabalho de volta às comunidades onde o Voguing teve a sua origem” e fez algumas observações sobre o peculiar modo de andar, pleno de consequências, dos homens negros. O que se confirma, mesmo sem ir ao Bronx, observando namorados a passear ao pôr do Sol no Hudson entre West Village e Tribeca.
Harrell sublinhou que lhe interessa sobretudo explorar as possíveis histórias alternativas, o trabalho da “imaginação histórica”. No programa, André Lepecki escreve: “O que é necessário não é apenas olhar (repetidamente, pelo menos vinte vezes...) para Judson e Harlem mas ligá-los através das mais improváveis conjunções, nas mais diversas instâncias, de modo a produzir tantas contramemórias quantas as ocasiões em que a obra for dançada, em tantos presentes quantas as versões que da obra se proponham”.
Imaginar o  pagode baiano dançado em pontas é uma das minhas fantasias favoritas.
Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo mas não se cruzaram. Se hoje as cruzarmos, quantas coisas estão a acontecer? A história muda? E se forem coisas que não aconteceram ao mesmo tempo? E se as cruzarmos com coisas que nunca aconteceram ou não chegarão a existir apesar de estarem a acontecer?
É um pouco confuso porque se trata não já da condição pós-moderna mas da era que se lhe seguiu. Todos os tempos e todos os lugares, ficção e realidade.

(Hipótese 3)
É mais uma questão decisiva: os cruzamentos dos espaços e tempos socioculturais; a indissociabilidade de uma infinita diversidade de tempos e espaços passados, presentes e futuros, reais, imaginários ou ficcionais.
Tudo o que existe é um produto contingente da dinâmica do processo de confronto e negociação entre estes espaços e tempos. É por isso que não há identidades, a própria palavra identidade é um abuso ideológico. Não se devia utilizar. Só há cruzamentos, contradições, confrontos e negociações sempre em processo de metamorfose. A extrema complexidade dos mundos da arte, hoje, e a generalizada implantação de dinâmicas de contaminação transdisciplinar é uma consequência deste fenómeno social e cultural mais geral, global.
A propósito do seu trabalho sobre o último filme (inacabado) de River Phoenix falei com Slater Bradley sobre a impossibilidade da nostalgia: o que já foi continua a ser ao mesmo tempo que o que é. Os fantasmas estão entre nós e são mais ou menos como nós. Isso provoca melancolia (título da exposição deste artista que irá inaugurar a 20 de Setembro na Galeria Filomena Soares).
Esta conversa foi à volta de uma piscina no telhado de um clube-hotel chamado Soho House que parece estar em voga (é preciso dar o nome e mais o nome de um membro anfitrião) para a gente das artes. Estava muito Sol mas é estranho porque a cena pertence a Los Angeles ou Miami e no entanto estamos em Manhattan e sem praia e também pode ser assim.
Uns dias depois, Slater mandou um SMS a dizer que estava a pensar mudar o título da exposição para Le Diable, Probablement. Dennis Lim (crítico de cinema no New York Times e Artforum) tinha-me dito que a não perder em Nova Iorque, nos cinemas, só as novas prints dos filmes de Robert Bresson.
Vi Le Diable, Probablement, talvez em estreia mundial, no Grande Auditório da Gulbenkian. Lembro-me da emoção com que João Bénard da Costa o apresentou    e sei que não dormi e passei a primeira aula da universidade do dia seguinte a escrever não sei o quê (não encontro o papel) a propósito do filme. Voltou a funcionar. Não é fácil ser mais eloquente nem mais atual. Os tempos estão a ficar todos ao mesmo tempo. “Qui nous manoeuvre en douce? Le diable, probablement”. O filme passou na BAM (Brooklyn Academy of Music) e já que estava  daquele lado fui comer um steak ao Peter Luger porque há quem diga que  é o melhor steak do mundo.
Gostei muito. 

...................................
Primeira das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 26-27)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.