À PROVA DE RESSURREIÇÃO?




Deste Lado da Ressurreição. Joaquim Sapinho.


“A graça existe apenas, portanto, onde se reflete a ressurreição.”
(Karl Barth)

“ … e até os mortos vão ao nosso lado.”
(Vozes ao alto, letra de José Homes Ferreira e música de Fernando Lopes-Graça)

Um dos filmes mais importantes do século XXI chama-se Deste Lado da Ressurreição (Joaquim Sapinho, 2011). Levou tanto tempo a fazer quanto este jovem século. Não sei se é dos melhores. Quem sou eu, que cada vez tenho mais dificuldade em encontrar o pior, para saber o que é melhor. Direi apenas que o filme, tal como é, não poderia ter sido feito sem o ator Pedro Sousa.
No entanto, há uma ideia que resulta de algumas dezenas de horas de conversa com Joaquim Sapinho. É uma ideia simples: só há vida (a morte não é coisa que haja e por isso não é assunto ). No entanto, a vida, que é tudo o que há (e por isso também não chega a ser “um” assunto), é apenas o que há deste lado de uma linha inexistente que nos separa de um outro lado a respeito do qual nada pode ser dito, nem sequer que seja um lado e muito menos que seja outro. Tudo se faz e se diz em função desta impossibilidade. É este o lugar da palavra ressurreição. Há artistas (por exemplo Robert Bresson e haverão poucos mais exemplos) que tratam este assunto. Que assunto? Não se sabe.
Um autor chamado Karl Barth explica isto muito bem: “ Aquilo a que os homens, deste lado da ressurreição, chamam ‘Deus’ é, de um modo muito característico, não Deus. O ‘Deus’ deles não redime a sua criação, mas permite o livre curso da humana ausência de retidão; não se declara a si mesmo como Deus, mas é a plena afirmação do mundo e dos homens tais como são. Isto é intolerável, porque, apesar das elevadas honras que lhe oferecemos para seu engrandecimento, ele é, de facto,  ‘Não-Deus’. O grito de revolta contra um tal deus está mais perto da verdade do que os sofismas com que os homens tentam justificá-lo. Só porque não têm nada melhor, só porque lhes falta a coragem do desespero é que a generalidade dos homens, deste lado da ressurreição, não cai no mais ostensivo ateísmo” (A Epístola aos Romanos, 1919).
 Há quem prefira a miséria que por aí se vê ao esplendor da desesperança, mas importaria não confundir a resignação com a complacência.
De modo inesperado, o tema da ressurreição surge como traço de união entre algumas das minhas mais intensas experiências artísticas deste ano. Na Art Unlimited, uma exposição paralela (este ano comissariada por Gianni Jetzer) à Feira de Arte de Basileia, onde se mostram obras de artistas representados por galerias participantes, Douglas Gordon apresentou Henry Rebel (2011). Numa sala escura dois grandes ecrãs equilibram-se, em cruz, um em cima do outro. Antes de passar à explicação vamos recuar um pouco.
Cheguei mesmo em cima da hora a uma projecção matinal do Festival de Cannes 2011 para ver Restless (Gus Van Sant, 2011). Em Cannes é difícil conjugar o horário da noite com o da manhã. A consequência foi não ter prestado a devida atenção aos credits de abertura. Por isso me senti acossado (haunted, como o realizador pretendia), ao longo do filme,  pela circunstância de reconhecer um olhar (ver uns olhos conhecidos) mas não os conseguir identificar (onde e de quem?). Os credits finais trouxeram a resposta. Soube com exactidão que tinha visto aqueles olhos num dos mais belos screen tests de Andy Warhol: o de Dennis Hopper. O rapaz chama-se Henry Hopper e tem, como deve ser, os olhos do pai.
Não sabia que Douglas Gordon viria a convidar Henri Hopper para uma obra integrada no projeto Rebel, iniciado por James Franco.
Douglas contou-me que estava um pouco nervoso quando convidou Henry para ir a Berlim falar do projeto. Na dúvida foi esperá-lo ao aeroporto mas ficou a dúvida : vou cumprimentá-lo ou beijá-lo, tratá-lo por tu ou por você? Henry aproximou-se, poisou a mala, abraçou-o e disse que era a segunda vez que estava em Berlim. Nunca se esqueceria da primeira vez porque foi em Berlim que recebeu a notícia da morte do pai: o pai.
Henry Rebel é uma dupla projecção, 1h30 em loop. As imagens registam o que podemos considerar duas performances, a solo, intensas como se de cortar a respiração (prefiro dizer que são hipnotizadoras e sufocantes, como os afundamentos e os exercícios carnais do protagonista de Deste Lado da Ressurreição). O ponto de partida são duas sequências não filmadas do guião de Rebel Without a Cause (Nicholas Ray,1955) envolvendo corpos, fogo e chicote. Para que não se pense que estou a contribuir para o altar habitual devo dizer que   naquela história o meu favorito não é James Dean, é Sal Mineo.
Não vou especular sobre o que Henry Hopper, em concreto, faz ou deixa de fazer. Só quero chamar a atenção para o que (em nome do ...) o corpo dele faz por todos os acima mencionados que já não estão nem ali nem entre nós, e por nós próprios que, bem vistas as coisas, também não estamos aqui.
Ainda em Basileia, na Fundação Beyeler , uma exposição que é a obra máxima de Phillipe Parreno. Marilyn Monroe deixou escrita em papel timbrado do Hotel Waldorf Astoria uma descrição do seu quarto no hotel.
Philippe Parreno, num filme intitulado Marilyn (2012) permite-nos, em plano-sequência subjetivo, ver aquilo que viram os olhos de Marilyn ao percorrer o quarto do hotel e ouvir o texto dita pela voz de Marilyn (não há nenhuma dúvida quanto ao facto de ser mesmo a voz de Marilyn, a voz do Happy Birthday, Mr President ... que todos ouvimos ao lado de JFK). Para eliminar qualquer derradeira dúvida, Parreno mostra-nos a caneta de Marilyn escrevendo o texto acima referido com a caligrafia de Marilyn.
Tudo isto tem uma explicação tecnológica mas o que aqui importa são as implicações espirituais. “ ... porque estas Mortas regressam, sim, estas Mortas regressam, senhores, porque eu as amo, e por saberem isso elas obedecem-me ; só o amor ressuscita os mortos” (Monsieur de Bougrelon, Jean Lorrain, 1897).
Numa outra sala, é apresentado o filme Continuously Habitable Zones aka C.H.Z. (2011), uma viagem às profundezas de um “jardim negro”, criado pelo autor para um coleccionador privado, algures no Norte de Portugal.
As imagens dos filmes existem, e são eternas, mas elas são também as imagens que delas permanecem na nossa memória. A memória não é um gravador, é um agente ativo de transformação que potencia a criação de novas imagens que passam a conviver com as imagens do passado e as suas sempre renovadas (por cada pessoa, em cada momento) memórias.
Importa dedicar aqui um pensamento a River Phoenix cuja existência e preservação tem inspirado tantos cuidados.  Slater Bradley, em colaboração com Ed Lachman, diretor de fotografia de Dark Blood (1993), o filme que River Phoenix estava a rodar aquando da sua morte (overdose à porta do The Viper Room em Sunset Boulevard), realizou uma série de desenhos a partir de fotografias de rodagem (Look up and stay in touch, 1993/2011) e dois filmes (Shadow, 2010 e Dead Ringer, 2011) que retomam situações perdidas do filme inacabado (cuja apresentação pública foi, por fim, anunciada para este Outono).
James Franco, em colaboração com Gus Van Sant, dedicou-se à re-criação de My Own Private Idaho, a obra prima do ator.  A instalação Memories of Idaho inclui os filmes My own private River, reunindo takes de River não utilizados na versão final, e Idaho, uma espécie de versão fantasma do filme feita a partir de um script não utilizado. Vi estas obras no Festival de Toronto 2011 no mesmo dia em que assisti à dia estreia mundial de Deste Lado da Ressurreição. Joaquim Sapinho não esteve presente porque teve de regressar a Portugal devido à morte do pai. Tema de um dos seus próximos filmes.
Quem está ou não está entre nós? Estamos entre quem?  Senti que estava entre eles (ou deveria dizer entre nós?), ao entrar na escurecida sala que, no verão passado, acolheu o melhor trabalho da Documenta 13, Kassel.
Estava escuro e não sabia para onde dirigir os passos nem onde pôr o corpo, não sabia se caminhar na direção de um centro ou derivar à procura de uma parede. Havia um som de fundo no escuro, um som de muitas vozes talvez humanas, e o som das vozes tomou volume e começaram a mover-se e a crescer à minha volta corpos que eram com toda a certeza humanos.
Esta é uma descrição da obra de Tino Sehgal. Algo que poderíamos caracterizar como uma performance interativa. A questão dos limites entre a realidade e a encenação, entre a luz e as trevas, ou o silêncio e a voz, é corporizada de modo a incluir o nosso próprio corpo como parte plena do que está a passar-se, que se não sabe o que é.
Antes de terminar é preciso referir a curta-metragem Manhã de Santo António (2012) de João Pedro Rodriques que encerrou a Semaine de la Critique em Cannes. O autor encontra na maior abstração formal uma intensidade maior. Qual é o estatuto real ou ficcional, fnio ? Quem recebeu o poder e a graça e daquelas raparaigas que regressam de uma noite de santo Ant. Estava escuro e nlaboraçm-meísico ou espiritual, dos rapazes e raparigas (fantasmas? mortos-vivos?) que regressam desta noite de Santo António?


Quem falou que a vida é à prova de ressurreição ?

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Artigo publicado em 'Quociente de Inteligência', suplemento de cultura do Diário de Notícias, a 8 de Dezembro de 2012. (pp: 20-21)

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